quarta-feira, 31 de outubro de 2007

Plataformas

Agradecemos a todos os que participaram, comentaram, deram sugestões e fizeram referências na internet ao O Estado do Mundo. O blogue termina aqui. Foi em conjunto com o site um instrumento importante na divulgação do programa deste fórum cultural.

Até breve.

APR/SP

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Visitas guiadas

Cada visita guiada à exposição Um Atlas de Acontecimentos dura aproximadamente 1 hora e constitui um percurso possível pela exposição, debruçando-se sobre um conjunto distinto de obras, para um limite máximo de 30 pessoas.

Visitas guiadas com António Pinto Ribeiro:
(1) 23 de Novembro, sexta-feira, 16h30
(2) 24 de Novembro, sábado, 16h30

Visitas guiadas com Lúcia Marques:
(1) 25 de Novembro, domingo, 15h
(2) 23 de Dezembro, domingo, 15h
(3) 30 de Dezembro, domingo, 15h

Sede da Fundação Calouste Gulbenkian, Galerias de Exposições Temporárias, Pisos 0 e 01.

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Visita virtual (parte I)



A primeira obra com que nos deparamos ao entrar na exposição Um Atlas de Acontecimentos é da autoria do americano Rodney McMillian (Columbia, 1969) e intitula-se Unknown: duas colunas representando as torres gémeas do World Trade Center, no topo das quais se encontram dois macacos embalsamados, ícones enigmáticos, de aspecto ameaçador.

Segundo os curadores, este trabalho remete «não só para a dimensão trágica do 11 de Setembro, mas também para a dimensão espectacular com que pode ser produzido o medo, relembrando até a personagem cinematográfica King Kong.»

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Mural(idade)


Santiago Cucullu, Creaks and Shafts, or 'a hungry feeling came over me stealing', 2007.
Foto de Rui Gonçalves.


É na tradição muralista sul-americana, em que Diego Rivera surge como principal (ou mais popular) referência, que se inscrevem as intervenções do argentino Santiago Cucullu, como a que realizou em duas paredes opostas (uma delas na imagem em cima) numa das galerias da Fundação Calouste Gulbenkian.

Actualmente a viver em Milwaukee, Cucullu apresenta composições próximas da abstracção, obras de grande escala, criadas in loco, tal como aconteceu em Lisboa, onde o artista trabalhou durante vários dias antes da inauguração, misturando elementos históricos e autobiográficos.

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Tensão



Mircea Cantor, Deeparture, 2005
2’43, transcrição 16mm para BETA digital, cor, s/som
© Mircea Cantor / Cortesia do artista e Yvon Lambert Paris, Nova Iorque


O que acontece quando o romeno Mircea Cantor (Oradea, 1977) filma um veado e um coiote encerrados num cubo branco?

«(...)A sequência não tem um final sangrento; o coiote não está a atacar o veado; na verdade, trata-se mais de uma dança entre os dois animais, muito embora a tensão entre a presa e o predador se sinta sempre no ar. Ao contrário de alguns críticos, que relacionam a sua obra com os três dias que Joseph Beuys passou numa galeria com um coiote – I like America and America likes me (1974) –, Cantor afirma que a sua obra não é um remake, nem uma homenagem, e que não tem nada a ver com crítica institucional.
O modo como Cantor transforma o cubo branco e introduz nele a ideia de uma força evolutiva parece ser a dinâmica básica do seu trabalho. As duas figuras (coiote e veado), como os dois pólos de uma metáfora (ou os dois símbolos de qualquer espécie de dicotomia na Terra), funcionam como uma escala para o público escolher uma postura/opção entre a vida e a morte, a sobrevivência ou o altruísmo, a natureza ou a imaginação... etc.»

Adnan Yildiz, do catálogo da exposição Um Atlas de Acontecimentos.

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Visita virtual (parte II)



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Sementes selvagens

Yael Bartana, Wild Seeds (2005). Instalação de vídeo e som, 6'39. Banda sonora de Daniel Meir. Cortesia Annet Gelink Gallery, Amsterdão.

Sojourn in this land, and I will be with you, and will bless you. For to you, and to your seed, I will give all these lands, and I will establish the oath which I swore to Abraham your father. I will multiply your seed as the stars of the sky, and will give to your seed all these lands. In your seed will all the nations of the earth be blessed. (Genesis 26:3,4)

Na instalação da israelita Yael Bartana (Afula, 1970) vemos imagens de um grupo de jovens a pôr em prática um jogo (de força) que eles próprios inventaram, que se refere à evacuação forçada do colonato de Gilat, em 2002, na Margem Ocidental e aos confrontos violentos que aí ocorreram entre soldados israelitas e colonos. A projecção de vídeo faz-se em dois ecrãs: de um lado as imagens, do outro a transcrição do que estão a dizer os jovens enquanto se desenrola o jogo.

(...)
estou a morrer (rapariga grita)
não consigo respirar (risadinhas)
não consigo ver
(gritos)
desiste, seu fascista
arde bastardo
desertem do exército, traidores (rapariga grita)
Um judeu não deporta outro judeu
onde está a tua consciência?
deixaste-a em casa?
volta para onde vieste
não! esta é a nossa terra
(...)


O vídeo foi filmado nos 'Territórios Ocupados', nas montanhas que compõem a paisagem de fundo do Colonato de Prat. Nesta disputa, chamemos-lhe assim, participam adolescentes, eles próprios zionistas de 3ª geração, que não se incluem entre as famílias de colonos e que são inclusivamente contra a ocupação israelita destes territórios.

Recortes:

«In many of her previous video works, Bartana has focused on the peculiarity of the rituals that form our national and cultural identities, often relating to the Israeli context but interpretable in many situations. This work [Wil Seeds] hints at how children are formed by their environment and use it creatively, perhaps as an outlet for their fears or as a way of learning how to behave later as adults in the world.» (daqui)

«Wild Seeds suggests the impact that political violence and its resulting instability have on people's psyches and behaviour, a theme that carries through much of Bartana's work. Hovering between manic playfulness and black humour, a darkly comic children's game becomes the contemporary chronicle of a traumatic cultural event. Everything is strange to the eye of a stranger, and the playful pantomimes of youngsters become macabre ritualized reenactments of forced exodus.» (daqui)

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terça-feira, 30 de outubro de 2007

Utopia


Mai-Thu Perret, Sylvania (2006). Cortesia da artista e Galerie Francesca Pia, Zurique.

Inspirada pelo Futurismo, há vários anos que a artista suiça Mai-Thu Perret (Genebra, 1976) tem vindo a desenvolver um projecto intitulado "A Fronteira de Cristal", um relato ficcional sobre uma comunidade de mulheres que se refugiam no deserto, algures nos Estados Unidos ou no México. As obras que têm sido produzidas convergem todas para a narrativa: as razões que levaram estas mulheres a deixar a sua vida na cidade, as suas esperanças e o que pretendem alcançar com esta utopia.

«(...)Algumas têm nome, outras são simplesmente tipos; significativamente, nenhuma delas é uma representação de Perret, que tem o cuidado de se distanciar destes avatares. Em vez disso, podem ser entendidas como recipientes vazios através dos quais Perret questiona a luta utópica: a sua forma urbana, modernista e esteticamente aerodinâmica; a sua forma não urbana, mais desmazelada e com consciência ecológica; e a relação vexante que se estabelece entre ambas.»

Ao lado: Echo Canyon (2006), de Mai-Thu Perret. Cortesia Galerie Francesca Pia, Zurique, e Galerie Barbara Weiss, Berlim.

«Nesta exposição [Um Atlas de Acontecimentos, para além da obra Sylvania], Perret apresenta Echo Canyon (2006), uma escultura cujo modelo é um cenário desenhado pelo futurista italiano Fortunato Depero para o bailado O Canto do Rouxinol, de Stravinsky. As suas formas individuais, retiradas da estrutura semelhante a um jardim criada por Depero e às quais é atribuído algum grau de autonomia, parecem vagamente utilitárias: poderiam ser aparelhos de comunicação.(...)»

Brian Sholis, do catálogo.

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Pulgarcito



Cual es el contenido de la palabra dios? - ninguno
Cual es el contenido de la noche? - el estar siendo.
El de la eternindad? - el estar siendo.
El del universo? - el estar siendo.
El de la tierra? - el estar siendo.
Cual es el contenido de lae humane? - el estar siendo.
El de su ser? - el estar siendo.
El de su sentir? - el estar siendo.
El de su tiempo, la eternindad? - el estar siendo.
Porque tuvo que haberme creado algo?
Que creo la noche?
Que algo fuera de la noche, fue que la creo? - nada.
Que creo la eternidad?
Que algo, fuera de la eternidad, fue que la creo? - nada.
Que creo a el universo?
Que algo, fuera del universo, fue que lo creo? - nada.
Que creo la tierra?
Que algo, fuera de la tierra, fue que la creo? - nada.
Que creo lae humane?
Que algo, fuera de lae humane, fue que la creo? - nada.
Porque tuvo que haberme creaddo algo?
Que algo fuera de mi, fue que me creo?
nada.

(Poesia en la Noche, por Pulgarcito)

Sebastián Díaz Morales (Comodoro Rivadavia, 1975) conheceu Ricardo Barrientos, também argentino e conhecido por "Pulgarcito", em Buenos Aires, no final dos anos 90. Barrientos vivia e escrevia os seus poemas na rua. Morales acompanhou-o nas suas experiências durante algum tempo e filmou as suas deambulações. O poeta "marginal" abandonou o seu país de origem quando uma instituição de saúde mental perdeu os seus escritos, que era tudo quanto possuía de material. Vai para Paris onde mais tarde volta a ter problemas, desta vez com a polícia. Barrientos morre em consequência de complicações cardíacas durante o processo de deportação.

NOWHERE (1997-2005), a instalação de vídeo e som de Sebastián Díaz Morales, consiste numa tripla projecção sobre parede de gesso gravada com poemas de Pulgarcito. Ao lado encontra-se uma caixa de vidro que contém alguns escritos originais. Uma homenagem?

Para Adnan Yildiz trata-se de «uma cinematografia específica, sobrepondo muitas camadas cinemáticas de modo a confrontar o público com a realidade de Barrientos. Barrientos aparece e desaparece em sequências de desvanecimento progressivo, e os seus poemas e escritos revelam-se. Não se trata apenas de uma história triste; é uma
transformação da existência humana.(...)NOWHERE não constitui uma representação nem uma reflexão sobre Barrientos; é um sonho hiper-realista sobre um homem que é ficcionado pelos seus próprios escritos.»

(do catálogo)

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Yeongdeungpo

A sul-coreana Minouk Lim (Daejeon, 1968) encara com cepticismo promessas de um futuro melhor, baseadas num desenvolvimento desenfreado, que segundo a sua leitura se guia apenas por pressupostos económicos.

Sobre a instalação New Town Ghost que apresenta agora em Lisboa até 30 de Dezembro, e também na Bienal de Istanbul até ao final desta semana, as palavras da própria Minouk:

«Appointed as one of the 'new towns' of the Seoul Metropolitan Government's New Town Project, Yeongdeungpo, where my office and studio are located, is the symbolic place where both hope for development and indifference of local residents have coexisted since the district around Yeongdeungpo Market contributed to the early industrial development in Korea.»

No vídeo vê-mo-la a cantar num camião de caixa aberta, que circula pelas ruas de Yeongdeungpo, acompanhada por um baterista.

Do "refrão":

I wanna sell, too, I wanna buy, too /
I wanna sell, too, I wanna buy, too /
Save my desire, it can go nowhere /
New town ghost / What have I lost?


Fotografia de Pauliana Pimentel, no dia da inauguração de Um Atlas de Acontecimentos.

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segunda-feira, 29 de outubro de 2007

Frequência morta


100 Rádios Mortos, instalação de Rui Toscano. Fotografia de Pauliana Pimentel,
com visitante no dia da inauguração.


Nos anos 90, Rui Toscano (Lisboa, 1970) explorava referências da cultura rock juvenil e urbana, como na obra Bricks Are Heavy (1994)- vários "tijolos" a tocar em simultâneo cassetes com gravações que artistas, músicos e dj's gravaram expressamente para o efeito - e também numa instalação que realizou no ano seguinte, They Say We’re Generation X, But I Say We’re Generation Fuck You!, onde outros tantos rádio-gravadores alinhados na parede compunham a letra X e reproduziam uma frase exclamada por um MC num concerto da banda hip-hop/rap Cypress Hill. No site do projecto madeirense Porta 33 encontramos um texto onde se relaciona o trabalho de Rui Toscano com «economia de meios expressivos» e onde se diz haver «fortes afinidades formais com o minimalismo».

Em 2007, António Pinto Ribeiro considera que, com a instalação 100 Rádios Mortos, o artista «intervém ferozmente contra a implantação dos media no nosso quotidiano.»

E explica o que vê nesta obra: «(...)o som de uma frequência morta, no limiar da percepção auditiva, exactamente contrário à produção do ruído espectacular comum aos media.»

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Montra


Pormenor de Sfera (2006), instalação de Josephine Meckseper em Um Atlas de Acontecimentos. Foto de Rui Gonçalves.

Ou de como gerar necessidades e desejos no consumidor.

«Tendo trabalhado como fotógrafa e repórter para revistas e jornais alemães, Josephine Meckseper (Lilienthal, 1964), que reside actualmente em Nova Iorque, possui um conhecimento em primeira mão do poder que os media têm para moldar o discurso público.(...)»

«(...)Ela compreende também que o desejo do consumidor, quase um fetiche, é uma poderosa força determinante das acções humanas e, portanto, a sua prática multimédia, que inclui instalações, esculturas, fotografias e filmes, detém-se astuciosamente na fusão dos media, da política e do consumismo nas sociedades ocidentais.(...)»

Brian Sholis, do catálogo.

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quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Videocast

O canal VernissageTV colocou hoje on-line imagens da inauguração de Um Atlas de Acontecimentos (6 de Outubro). O vídeo tem uma duração de 10 minutos e pode ser visto aqui.

A realização e edição é do correspondente da Vtv Thom de Bock.

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Agenda

Lançamento do livro Indústrias Culturais. Imagens, Valores e Consumos, de Rogério Santos, hoje, pelas 19h, na Livraria Almedina do Atrium Saldanha.

Uma colecção sobre imagens permite conhecer novas abordagens a partir de novos livros. Apresentação do segundo livro da colecção "A Construção do Olhar", das Edições 70, a cargo de António Pinto Ribeiro. O livro é prefaciado por Isabel Gil, directora da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa. Convidados-surpresa darão curtos depoimentos.

Este livro nasceu do blogue Indústrias Culturais. Quais são estas indústrias? O cinema, a fotografia, a televisão e os cartazes publicitários são as mais importantes? Qual o papel dos centros comerciais na difusão da cultura? Que lugar ocupam o sudoku e os jogos vídeo? Os blogues concorrem hoje com os veículos tradicionais de difusão e expressão?


As indústrias culturais remetem para o universo de reprodução técnica (registo e difusão) da cultura, casos da televisão, cinema, música e fotografia. Um bem cultural torna-se acessível a qualquer pessoa graças à cópia ou ao envio de ficheiro pela internet. Mais recentemente, ganharam força as indústrias criativas, presentes nas artes do espectáculo e cuja articulação com a publicidade, vídeo, actividades de lazer e indústrias culturais contribui para a formação do PIB de um país ou região.

O livro resulta do cruzamento de vários caminhos teóricos e práticos, como a reflexão a partir do texto fundador de Adorno e Horkheimer sobre indústrias culturais e a análise destas actividades com especialistas e estudantes universitários. Inclui-se também a compreensão dos grupos receptores: audiências de televisão, consumidores de centros comerciais, fãs de bandas musicais ou jogos como o Sudoku.

O ponto de partida do livro é o blogue Indústrias Culturais (http://industrias-culturais.blogspot.com), espaço que o autor alimenta diariamente e onde observa e comenta a realidade dos acontecimentos, faz a leitura de livros e artigos de jornais sobre a área e partilha os mesmos assuntos com outros investigadores ou simples leitores.
(fonte: www.almedina.net)

Organização: José Carlos Abrantes e Almedina

LIVRARIA ALMEDINA
Atrium Saldanha, loja 71, 2.º piso
Lisboa

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quarta-feira, 24 de outubro de 2007

A arte da reapropriação


Kelley Walker
Then we joked about how we had always wanted a sunken living room, 2001
Cortesia do artista e Paula Cooper Gallery, Nova Iorque


O artista plástico americano Kelley Walker (Columbus, 1969) incluiu este "póster", entre outros, num CD que foi posto à venda em 2001 com a indicação de que essas imagens - e o próprio disco que continha os ficheiros - podiam ser reproduzidas as vezes que se quisesse. Para além disso, podiam ser manipuladas (em Photoshop, por exemplo) e disseminadas na sua forma alterada. Um trabalho directamente relacionado com a distribuição, a circulação e a re-utilização de imagens dos media na sociedade contemporânea.

Como método, as imagens-base são descarregadas da internet, ou digitalizadas, e depois sujeitas a uma reciclagem técnica com materiais diversos pouco ortodoxos, como chocolate ou pasta dentrífica. Kelley Walker "apropria-se" dessas imagens, sublinhando aspectos que remetem para questões políticas ou de consumismo.

Na exposição Um Atlas de Acontecimentos, Kelley Walker apresenta três destas impressões trabalhadas por si - uma das quais reproduzimos em cima, sem dela termos feito qualquer "apropriação"(!). A fotografia capta uma situação que resultou de um tremor de terra na Califórnia, nos anos 70. (As outras duas obras também se referem a catástrofes naturais.) O título encerra um jogo de palavras difícil de traduzir: as sunken living rooms eram muito populares na arquitectura de interiores das casas suburbanas da época, salas de estar com dois pisos, um mais "afundado" do que outro.

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terça-feira, 23 de outubro de 2007

Conforto da natureza


© Camila Rocha

Camila Rocha (São Paulo, 1977) vive e trabalha entre o Brasil e a Turquia (Istambul). O seu trabalho tem vindo a ser reconhecido especialmente pela participação em residências artísticas, como a que fez em Helsínquia. Em Lisboa, apresenta agora duas obras em suportes diferentes, audiovisual e desenho.

No vídeo Carinho de Planta (2004), de que reproduzimos em cima um fotograma, vê-mo-la a afagar - e a ser afagada por - um enorme molho de juncos em ambiente nocturno. As imagens são acompanhadas por alguns segundos do tema instrumental Tick eats the olives, de Devendra Banhart (considerado autor "naturalista"), numa versão do músico e compositor turco Murat Opus.



© Camila Rocha

Aproveitando a luz natural da galeria, e a parede de vidro através da qual ficamos em contacto visual com o jardim exterior da Fundação Calouste Gulbenkian, Camila instalou, sobrepondo, o que concebeu como parte de um Jardim de Nova Espécies de Plantas (2006), projecto que tem vindo a desenvolver nos últimos anos. A artista cria assim aquilo a que os curadores chamam «um jogo de confronto entre duas produções culturais».

E Lúcia Marques, no catálogo, escreve:

«(...)As suas propostas artísticas [de Camila Rocha] têm revelado uma atenção especial à circulação de motivos e temas ligados a um mundo vegetal em vias de extinção, assinalando a sobrevivência contemporânea desse universo de referências sobretudo no plano das imagens.(...)»

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segunda-feira, 22 de outubro de 2007

...uma história que você nunca mais esqueceu?

«A pergunta surgiu durante as conversas, a partir de minha curiosidade em saber: com tantas histórias vividas por estes adolescentes (histórias de violência, traumas, desencantos, agressões e até alegrias) será que eles se lembrariam de apenas uma história, a mais importante?»

É assim que a artista Rosana Palazyan (Rio de Janeiro, 1963) explica a origem da série de 10 desenhos minúsculos em papel (24 x 17 cm) que apresenta actualmente na exposição Um Atlas de Acontecimentos. Uma instalação que resulta dos três anos que passou a visitar e a falar com adolescentes, de idades entre os 12 e os 17 anos, internados em reformatórios brasileiros.

«No início, o que pretendia ser uma pesquisa, passou a caracterizar meses de convivência diária, diálogos, trocas interculturais e afetivas, projetando também, em paralelo, a inserção como voluntária no processo de atividades sócio-educativas», diz ainda Rosana no texto que nos enviou.

...meu amigo morreu no meu lugar, nessa vida tenho que ser sozinho. Andou comigo mesmo se não for bandido, tá morto... é o título de um desses desenhos, escrito exactamente da mesma forma, coloquial, utilizada para verbalizar o episódio (trágico, não esquecido).

«A discrepância entre a suavidade dos materiais utilizados e a crueldade das situações recriadas é notória, exigindo do espectador uma postura mais atenta e sujeita a sentimentos contraditórios, quase sempre entre a sedução e a repulsa face ao que nos é dado a ver.(...)»

Lúcia Marques, do catálogo.

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Reload

Percorrer as galerias de exposições temporárias numa animação a três dimensões, agora em versão mais compacta:

Galeria Piso 0 (35,7 MB)
Galeria Piso 01 (13,1 MB)

Também disponível no site.

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Circuito

Entretanto na...



... vai ser hoje exibido O Estado do Mundo: um filme em seis partes, na secção "Perspectiva Internacional". Repete dia 25 e 26 de Outubro.

A 31ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo tem blogue.

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sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Agenda

Um pouco em cima da hora, mas ainda assim gostaríamos de destacar três filmes que o Doclisboa - Festival Internacional de Cinema Documental de Lisboa - vai exibir nos próximos dias e que de uma forma ou outra têm uma relação próxima com iniciativas do Fórum Cultural O Estado do Mundo:


He Fengming, do realizador Wang Bing (que contribuiu para O Estado do Mundo: um filme em seis partes, com a curta-metragem Brutality Factory)

«Agasalhada com um casaco vermelho, uma mulher atravessa um bloco de apartamentos e entra em casa. Lá dentro, He Fengming, de sessenta anos, instala-se num cadeirão e começa a recordar o passado. As suas memórias fazem-nos recuar até à revolução de 1949, ponto de partida para o relato de uma história de vida prodigiosa que se confunde com a própria história da China comunista. Filmado admiravelmente (limitando-se a um plano fixo quase ininterrupto de Fengming no seu cadeirão falando para a câmara), He Fengming é o segundo documentário de Wang Bing. Vencedor do Prémio Georges Beauregard no Festival Internacional de Documentário de Marselha em 2007.»

He Fengming
Wang Bing, China, 2007, 184'
Secção Competição Internacional
21 Out. 14.30 - Culturgest (Grande Auditório)
23 Out. 16.30 - Cinema Londres (Sala 1)



News from Home, da realizadora Chantal Akerman [que contribuiu para O Estado do Mundo: um filme em seis partes, com a curta-metragem Tombée de Nuit sur Shangaï (Avril 2007)]

«A cidade de Nova Iorque filmada por Chantal Akerman enquanto, em off, a realizadora lê as cartas que a mãe, preocupada, lhe envia da Bélgica.»

News from Home
Chantal Akerman, França/Bélgica/RFA, 1976, 85'
Secção Diários Filmados e Autoretratos*

24 Out. 22.45 - Culturgest (Pequeno Auditório)


Knowledge is the Beginning, um documentário que foi aqui referido a propósito do concerto da West-Eastern Divan Orchestra, dirigida pelo Maestro Daniel Barenboim, no encerramento da Plataforma 2 d'O Estado do Mundo (conferências, cinema, teatro, dança, música) em Agosto de 2007.



«A West-Eastern Divan Orchestra, composta por jovens músicos árabes e israelitas, nasceu da amizade entre o maestro israelita Daniel Barenboim e o palestiniano Edward Said. Este comovente documentário político, dedicado a Edward Said, vive muito do carisma de Barenboim e do seu credo que "a música é a língua da paz". Inesquecíveis são o confronto de Barenboim com a ministra da cultura israelita e o grande momento de triunfo da orquestra, quando consegue finalmente tocar em Ramallah.»

Knowledge is the Beginning
Paul Smaczny, Alemanha, 2006, 115'
Secção Maratonadoc
28 Out. 14.00 - Cinema São Jorge (Sala 1)



Ficam as sugestões.

*A secção Diários Filmados e Autoretratos é comissariada por Augusto M. Seabra.


Rainer Werner Fassbinder costumava dizer que não punha bombas, fazia filmes. Era a sua maneira de dinamitar e de gerar novas energias.

Pelas mesmas razões, nós fazemos um festival.


Ana Isabel Santos Strindberg & Sérgio Tréfaut, directores do Doclisboa, na introdução do catálogo.

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quinta-feira, 18 de outubro de 2007

Entre o amor e o ódio



Eduardo Sarabia (Los Angeles, 1976) vive em Guadalajara há alguns anos. A obra que criou em 2005 e que agora expõe em Lisboa, A Thin Line Between Love and Hate (30 vasos de cerâmica pintados à mão e embalagens de cartão), surge na sequência de outros trabalhos - entre os quais Salón Alemán, um bar em Berlim onde servia tequila que ele próprio destilava - relacionados com a cultura tradicional mexicana, que Sarabia cruza com referências aos circuitos de distribuição paralelos, vulgo contrabando.

Produzidas de forma artesanal numa zona do centro do México, as peças que constituem esta instalação apresentam ilustrações de substâncias ilegais (como se vê pela fotografia) e outros detalhes que remetem para o mercado negro, que substituem os desenhos típicos a azul e branco na porcelana.


Tequila Sarabia (Blanco, Reposado, Añejo)
2003-2005

«Sarabia’s convergence of arts and crafts with high art is temporal as it is geographical. His finely executed ceramic vases that are displayed on wooden boxes with silkscreen advertisements of fruit companies are a global palimpsest and contemporary riff on Mexican Talavera pottery. Talavera is an historical amalgam of pre-Hispanic, Spanish and Mudéjar influences and this style is updated in Sarabia’s sculptures with a verve that does not sacrifice poetic criticality for aesthetics. Not only do his works have an affinity with Andy Warhol’s simulacrum wooden Brillo Boxes, but they also update the Argentine art critic Rafael Squirru’s commentary on the hegemonic nature of North American Pop art with its transcontinental links to global socioeconomic circuits. Whereas Warhol emptied the Pop art signifier of meaning, Sarabia reinserts it with a critical and political vengeance.»

Mais imagens de trabalhos deste artista no site da galeria nova-iorquina I-20.

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terça-feira, 16 de outubro de 2007

Vaso de Warka (4300 anos)



O projecto The Invisible Enemy Should Not Exist, de Michael Rakowitz (Nova Iorque, 1973), consiste em reproduzir, com papel de jornal reciclado e todo o tipo de embalagens de produtos do Médio Oriente, as dezenas de artefactos arqueológicos que foram roubados do Museu Nacional do Iraque, quando foi saqueado nos dias que se seguiram à ocupação norte-americana de Bagdade, em Abril de 2003.

Para apresentar esta instalação em Lisboa, que já passou este ano pela Bienal de Sharjah e que ainda pode ser vista até ao início de Novembro na Bienal de Istambul, Michael Rakowitz, professor de Teoria e Prática Artística nos Estados Unidos, foi assistido por várias pessoas para em conjunto construirem especialmente para Um Atlas de Acontecimentos mais uma série destes artefactos. Cada um deles é acompanhado de uma ficha museológica (verdadeira, com número de inventário, etc.) e um texto cujo conteúdo o artista foi buscar a muitas das afirmações feitas sobre a pilhagem. Donald Rumsfeld, por exemplo, terá dito (numa conferência de imprensa?):

Deixem-me dizer-vos mais uma coisa. As imagens que estão a ver na televisão, repetidamente, umas atrás das outras, são sempre as mesmas, de uma pessoa qualquer a sair de um edifício com um vaso, e vêem-na 20 vezes, e pensam, «Meu Deus, havia assim tantos vasos?» (Risos.) «É possível que houvesse assim tantos vasos no país inteiro?»

Outro exemplo:

Foi declarada uma amnistia geral para as pessoas dispostas a devolver objectos roubados. Os objectos pequenos chegaram primeiro, na sua maioria trazidos por locais que pediram desculpa, dizendo que os tinham levado para os salvaguardarem. O Vaso de Warka, de 4300 anos, chegou na parte traseira de uma carrinha pick-up; a Cabeça de Warka, com data semelhante, foi encontrada num pomar em Baqubah. Até reproduções de objectos para venda na loja do museu foram devolvidas!

—Selma Al-Radi

Existe ainda uma parede móvel, onde está afixada uma time-line ilustrada com acontecimentos e personagens significativas, tanto na Arqueologia como na História recente da região.

(fotografias de Rui Gonçalves e Pauliana V. Pimentel)

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O poder do gesto



Nesta fotografia de Pauliana Pimentel, tirada minutos antes da abertura das portas a 6 de Outubro, dia de inauguração, vê-se ao fundo a instalação Arms, de Nasan Tur (Offenbach, 1974).

Sobre o trabalho deste artista alemão de ascendência turca, diz Adnan Yildiz no catálogo:

«(...)originalmente, esses braços pertenciam a fotos de políticos publicadas na imprensa internacional. As imagens dos braços foram recortadas pelo artista como forma de as descontextualizar, tendo sido depois reunidas como um alfabeto da comunicação política que tem lugar na esfera pública. Não temos qualquer informação sobre a quem pertence este ou aquele gesto, que foto foi tirada por que organização, nem quem é o público. Esta falta de informação empurra-nos para uma espécie de tabula rasa, o que nos deixa ver as coisas com mais clareza. A dedução que o artista faz da comunicação pública – que o corpo é a única forma de comunicação – traz a lume outra discussão relativamente à forma como as massas são controladas.(...)»

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Animação 3D

Passam a estar disponíveis para download dois ficheiros de imagem, que permitem percorrer a maquete do espaço da exposição Um Atlas de Acontecimentos, tal como foi concebido e desenhado pelo curador António Pinto Ribeiro e a arquitecta Teresa Nunes da Ponte.

Galeria Piso 0 (156 MB)
Galeria Piso 01 (61,6 MB)

Clicar com o botão direito do rato no link, seleccionar "Save Target As" e descarregar para o computador. O processo demora mais ou menos tempo, obviamente, dependendo da velocidade de ligação à internet do utilizador.

(com um agradecimento também à arq. Sónia Antunes)

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segunda-feira, 15 de outubro de 2007

Bronze, Aço e Papel


© Rui Gonçalves

À distância, o tríptico hard de Paulo Nozolino (Lisboa, 1955).

Nas palavras de António Pinto Ribeiro, «uma denúncia do poder tenebroso do dinheiro».

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Estrutura simbólica

Ângela Ferreira, a primeira (por ordem alfabética) do grupo de três artistas portugueses presentes na exposição Um Atlas de Acontecimentos, nasceu em (Lourenço Marques) Maputo, em 1958.

Na 52ª Bienal de Veneza, a decorrer até 21 de Novembro, apresenta um projecto intitulado Maison Tropicale. Mas a sua pesquisa sobre a proliferação da arquitectura modernista em África - que segundo a artista «constitui um autêntico laboratório de construção, espelhando não só tendências escultóricas, como também os condicionalismos sociais e políticos vigentes» - não ficou por aqui.

Para a mostra que encerra o Fórum Cultural O Estado do Mundo, Ângela Ferreira esteve este Verão em Moçambique, propositadamente para trazer de volta a Lisboa imagens de uma Casa de Colonos Abandonada, título do tríptico de fotografias que podemos encontrar agora na galeria de exposições temporárias do piso 0, na sede da Fundação Calouste Gulbenkian.

Sobre esta obra, lê-se no catálogo:

«Uma casa abandonada na ilha de Benguerra, arquipélago do Bazaruto. Uma ilha idílica situada a poucos quilómetros da costa sul de Moçambique. Uma casa que nunca foi acabada, que aparenta ter sido estranhamente abandonada no momento em que toda a sua estrutura de betão estava completa. Não houve tempo para acabamentos, não há sinais de alguma vez ter havido caixilhos ou portas ou vidros nas janelas. As paredes nunca foram rebocadas, ficando cinzentas de cimento e textura de lixa. Estão cobertas de escritos a carvão e outras marcas de graffiti rural. Uma espécie de carcaça oca, estrutura simbólica com ar de pertencer a subúrbios citadinos mas instalada numa ilha quase deserta. Tem tudo o que necessita para se poder identificar como arquitectura doméstica: o número de divisões, tecto e cobertura, e até mesmo a varanda. As formas são suficientemente definidas para se poder identificar o estilo e a linguagem formal. Mais um clássico bizarro da arquitectura modernista em África, que provavelmente data dos anos 60 ou 70. Uma estrutura de linhas simples, com grandes janelas panorâmicas desenhadas para permitir a continuação do exterior para o interior e vice-versa. Com algumas adaptações africanas, como a necessária versão alargada da varanda e ainda alguns detalhes escultóricos quase surreais ou tropicais que se sobrepõem à fachada do edifício. Os únicos sinais de destruição são aqueles que os vendavais e ciclones deixaram. Uma casa de colonos abandonada?»

(texto de Ângela Ferreira)

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sexta-feira, 12 de outubro de 2007

Moda urbana

Conhecida como 'Lolo', Nontsikelelo Veleko é uma artista sul-africana, da mesma geração dos seus conterrâneos Pieter Hugo e Robin Rhode (já aqui referidos), que começou por estudar Design Gráfico. O seu trabalho está a ser exposto pela primeira vez em Portugal. Traz uma série de retratos de moda - no original, Fashion Portraits. Considera-se uma fotógrafa "de rua". Dizem que o seu portfolio - em que se incluem outras séries, como os grafitti nas ruas de Joanesburgo (Lolo é também muito influenciada pelo hip-hop) - transmitem uma sensação de orgulho africano.

"I am also celebrating colour as I come from a Xhosa background where the language is colourful", diz a artista.

As 10 fotografias de Veleko que encontramos em Um Atlas de Acontecimentos remetem para as mudanças de visual na última década, que traduzem novas questões identitárias surgidas no pós-apartheid.

(em cima, fotografia de Nontsikelelo Veleko, Cindy & Nkuli, cortesia de Goodman Gallery, Joanesburgo)

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quinta-feira, 11 de outubro de 2007

As ruas de Lagos


Pieter Hugo, Mallam Galadima Ahmadu with Jamis, Nigeria (2005)

Do fotojornalismo à fotografia documental, com passagem por Lisboa, onde expôs em 2004 The Albino Project, realizado no âmbito de uma residência na Fabrica, escola interdisciplinar da Benetton, Pieter Hugo (Joanesburgo, 1976) apresenta agora em Um Atlas de Acontecimentos parte da sua série The Hyena & Other Men.

No seu site, conta como começou este trabalho:

These photographs came about after a friend emailed me an image taken on a cellphone through a car window in Lagos, Nigeria, which depicted a group of men walking down the street with a hyena in chains. A few days later I saw the image reproduced in a South African newspaper with the caption 'The Streets of Lagos'. Nigerian newspapers reported that these men were bank robbers, bodyguards, drug dealers, debt collectors. Myths surrounded them. The image captivated me.

Through a journalist friend I eventually tracked down a Nigerian reporter, Adetokunbo Abiola, who said that he knew the 'Gadawan Kura' as they are known in Hausa (a rough translation: 'hyena handlers/guides').

A few weeks later I was on a plane to Lagos. Abiola met me at the airport and together we took a bus to Benin City where the 'hyena men' had agreed to meet us. However, when we got there they had already departed for Abuja.

In Abuja we found them living on the periphery of the city in a shantytown - a group of men, a little girl, three hyenas, four monkeys and a few rock pythons. It turned out that they were a group of itinerant minstrels, performers who used the animals to entertain crowds and sell traditional medicines. The animal handlers were all related to each other and were practising a tradition passed down from generation to generation. I spent eight days travelling with them.


The spectacle caused by this group walking down busy market streets was overwhelming. I tried photographing this but failed, perhaps because I wasn't interested in their performances. I realised that what I found fascinating was the hybridisation of the urban and the wild, and the paradoxical relationship that the handlers have with their animals - sometimes doting and affectionate, sometimes brutal and cruel. I started looking for situations where these contrasting elements became apparent. I decided to concentrate on portraits. I would go for a walk with one of the performers, often just in the city streets, and, if opportunity presented itself, take a photograph. We travelled around from city to city, often chartering public mini-buses.

I agreed to travel with the animal wranglers to Kanu in the northern part of the country. One of them set out to negotiate a fare with a taxi driver; everyone else, including myself and the hyenas, monkeys and rock pythons, hid in the bushes. When their companion signalled that he had agreed on a fare, the motley troupe of humans and animals leapt out from behind the bushes and jumped into the vehicle. The taxi driver was completely horrified. I sat upfront with a monkey and the driver. He drove like an absolute maniac. At one stage the monkey was terrified by his driving. It grabbed hold of my leg and stared into my eyes. I could see its fear.

Two years later I decided to go back to Nigeria. The project felt unresolved and I was ready to engage with the group again. I look back at the notebooks I had kept while with them. The words 'dominance', 'codependence' and 'submission' kept appearing. These pictures depict much more than an exotic group of travelling performers in West Africa. The motifs that linger are the fraught relationships we have with ourselves, with animals and with nature.

The second trip was very different. By this stage there was a stronger personal relationship between myself and the group. We had remained in contact and they were keen to be photographed again. The images from this journey are less formal and more intimate.

The first series of pictures had caused varying reactions from people - inquisitiveness, disbelief and repulsion. People were fascinated by them, just as I had been by that first cellphone photograph. A director of a large security company in the USA contacted me, asking how to get in touch with the 'hyena group'. He saw marketing potential: surely these men must use some type of herb to protect themselves against hyenas, baboons, dogs and snakes? He thought that security guards, soldiers and his own pocket could benefit from this medicine.

Many animal-rights groups also contacted me, wanting to intervene (however, the keepers have permits from the Nigerian government). When I asked Nigerians, "How do you feel about the way they treat animals", the question confused people. Their responses always involved issues of economic survival. Seldom did anyone express strong concern for the well-being of the creatures. Europeans invariably only ask about the welfare of the animals but this question misses the point. Instead, perhaps, we could ask why these performers need to catch wild animals to make a living. Or why they are economically marginalised. Or why Nigeria, the world's sixth largest exporter of oil, is in such a state of disarray.


-Pieter Hugo

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Visita guiada (apontamentos)


Fotografia de Rui Gonçalves

À esquerda, Shit List (2006), uma instalação de Erinç Seymen (Istambul, 1980), o mais jovem dos artistas representados em Um Atlas de Acontecimentos. Dezenas de fotografias recortadas de jornais diários turcos, em que os rostos foram "apagados" pelo artista. Uma crítica ao panorama político turco, uma lista negra...? De Erinç Seymen são apresentadas mais duas obras no piso superior da galeria de exposições temporárias, Poker Face e Traitor.

À direita... Wall Drawing (2006), do artista argelino Adel Abdessemed (Constantine, 1971). Recentemente incluída na 52ª Bienal de Veneza, esta instalação consiste em dois círculos de arame farpado, "círculos de perigo", tal como os define Adnan Yildiz, curador convidado para escrever no catálogo da exposição:

(...)Referindo-se ao modo como os territórios são protegidos por corpos humanos, Abdessemed desenha linhas abstractas de fronteiras entre a vida e a morte, a segurança e o perigo, a eternidade e a mortalidade. Reproduzindo o corpo humano por meio de um material que é utilizado para proteger as fronteiras, cria assim novas possibilidades para reflectirmos sobre as fronteiras que, hoje em dia, nos rodeiam a todos. A relação entre os Estados e os seus cidadãos torna-se simbiótica e orgânica, relativamente à forma como os Estados se protegem uns dos outros e ao modo como as
fronteiras são criadas por sistemas de defesa.

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quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Poesia minimal



Seifollah Samadian vive em Teerão. Num dia em que uma fortíssima tempestade de neve varreu a cidade, Seifollah pegou na câmara de 35 mm e da janela do seu apartamento filmou uma mulher que esperava pelo autocarro. Apesar do mau tempo, ela não desiste, e vê-mo-la durante vários minutos de guarda-chuva aberto na paragem. No final do vídeo, aparece nos agradecimentos como "the waiting stranger". As imagens são acompanhadas pelo barulho do vento, dos corvos e outros sons da cidade.

Este fotógrafo, realizador e cineasta iraniano é há vários anos editor da revista de artes visuais Tassvir - explicou-nos quando esteve em Lisboa que a palavra significa "imagem" - e organiza um festival de cinema homónimo que este ano irá decorrer em Novembro, em Teerão.

Sobre Seifollah Samadian, diz o seu amigo Abbas Kiarostami, com quem trabalha regularmente:

"...uses his camera all the time and you can see this in the beauty of his camera movements. I'm going to take one of his sayings 'Other people say they smoke 1 pack a day,' he says 'I smoke 5 packs a day - 5 packs of film.' It's not just that he uses all that film - good for the film companies but not necessarily for anyone else. But he knows how to enter a space, this gentleman can't look at anything without a camera. And when he turns off the camera its like his eyelids are closed." (daqui)

Os 8 minutos de duração de The White Station podem ser vistos como instalação vídeo na exposição Um Atlas de Acontecimentos, até 30 de Dezembro.

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terça-feira, 9 de outubro de 2007

Cicatrizes


© Sophie Ristelhueber, Iraq (tríptico), 2001

Desde 1982 que Sophie Ristelhueber (Paris, 1949) tem fotografado Beirute, o Kuwait, a Bósnia, o Iraque, paisagens marcadas por conflitos violentos. A artista francesa deixa-se envolver pelas ambiguidades daquilo a que chama "terreno do real e das emoções colectivas".

(...)A artista lida assim com a actualidade mais mediática, mas contrapõe ao acontecimento o seu lastro, para tornar evidente a alternância cíclica da dinâmica construtiva/destrutiva que estrutura a nossa existência civilizacional. Daí o paralelismo entre as marcas de objectos pessoais e o rasto bélico deixado pela artilharia americana, que encontramos na série realizada poucos meses após o fim da Guerra do Golfo (Fait, 1992). Daí também a dualidade de sentidos de La Campagne (1997), onde joga com a camuflada convergência entre campo e campanha militar. Outro exemplo é precisamente o tríptico Iraq (2001): trabalho resultante de uma estadia de um mês no Iraque, condensando essa experiência numa paisagem que assume a função simbólica de um "exército derrotado". São alguns "detalhes do mundo", segundo as palavras da artista, que nos levam até aos horrores de todas as guerras gravadas na face da Terra.

Excerto de texto de Lúcia Marques para o catálogo da exposição Um Atlas de Acontecimentos, disponível para consulta (e venda) na Fundação Calouste Gulbenkian.

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Uma nova centralidade para o pensamento crítico

A pedido de vários leitores, publicamos aqui o texto de apresentação do volume "A Urgência da Teoria", gentilmente cedido pela sua autora, a Professora Doutora Isabel Capeloa Gil (Universidade Católica Portuguesa), a quem muito agradecemos a disponibilidade. Recordamos que a apresentação teve lugar no dia 28 de Setembro de 2007, na Fundação Calouste Gulbenkian. No blogue Indústrias Culturais estão on-line registos em vídeo da ocasião.

Apresentar o volume "A Urgência da Teoria" constitui para mim uma enorme honra e responsabilidade. Trata-se, contudo, de uma tarefa hercúlea, complexa e quiçá impossível, dado o fôlego das intervenções, a diversidade das abordagens e a sua enorme riqueza. Sinto-me, por isso, um pouco como o cartógrafo de Jorge Luís Borges, consciente da sua insignificância e da incompletude do mapeamento, perante a complexidade do real. Assim, sem ambições de uma sistematização compreensiva, aliás já efectuada em profundidade por António Pinto Ribeiro nas Conclusões ao volume, proponho aqui uma narrativa localizada da interpelação que os textos produziram nesta leitora.

Tal como reflecte Robert Musil no início do seu opus magnus, O Homem sem Qualidades: "Era claro para si, que algo tinha de acontecer!" Musil escreve em 1930, num período marcado pela tensão política, pela crise civilizacional, pela radicalização do discurso em torno de projectos sócio-políticos diferentes na ideologia e próximos na tecnocracia, marcado pela anomia e pelo desencanto. Vivia-se uma época de polarização entre o excesso ruidoso do discurso político populista e a racionalidade cautelosa do discurso intelectual. Nestas condições era claro, para todos, como para Ulrich, o herói de Musil, que algo tinha de acontecer. E aconteceu!

Em 2007, vivemos tempos diferentes, mas igualmente turbulentos, cindidos entre o ressentimento e a arrogância, o medo do Outro e o enclausuramento do Eu, a fome e a abundância, a repressão e a democracia. Como diria Hölderlin, vivemos em tempos de carência e algo tem de acontecer. E aconteceu. No âmbito cultural, em Portugal, em 2007, acontece o Fórum Cultural O Estado do Mundo, uma iniciativa que procura aferir a singularidade destes tempos de carência e contribuir para a renovação dos modelos de participação cultural. Na sua polivalência e ambição compreensiva, o Fórum que a Fundação Calouste Gulbenkian associou à celebração dos seus 50 anos, mostra afinal a cultura como evento, prática de cidadania, foco de desenvolvimento económico, espaço de reflexão e intervenção política. Como referia Homi Bhabha na sua lição inaugural "Ética e Estética do Globalismo: Uma Perspectiva Pós-Colonial", constata-se afinal que: "Quando o mundo se torna sombrio, a ficção, a arte, a poesia, a teoria, a metáfora vêm iluminar a nossa difícil situação cultural e política."

Que a teoria possa iluminar a difícil situação do Estado do Mundo, pode parecer à partida um projecto delicado, num momento de transição entre a recusa da ambição hegemónica da teoria, que culminou no final dos anos 80 com a discussão “Against Theory” [“Contra a Teoria”] concentrada em torno da revista, Critical Inquiry e o gesto de retorno à ágora, como espaço privilegiado para “uma outra abordagem, mais rica, dos enigmas das sociedades contemporâneas”, como escreve A. P. Ribeiro. As razões apresentadas contra a teoria são de vária ordem, mas podem resumir-se em dois pontos fundamentais: o amplexo totalitário de um modelo de pensamento abstracto que perdeu qualquer ligação ao real, e a ausência de intervenção social e política dos modelos conceptuais produzidos.

A tarefa que a plataforma 2 do Estado do Mundo se coloca com as grandes lições “A Urgência da Teoria” é por isso difícil e ousada, pois apresenta-se como projecto de recanonização da teoria em novo contexto. Buscando desconstruir a teoria exercida de cima para baixo, por uma elite para um conjunto de conversos ensimesmados na sua torre de marfim, demonstra a necessidade de articular o pensamento crítico com a complexa realidade contemporânea e a utilidade da razão para a educação do género humano apelando, como refere Miguel Vale de Almeida na sua lição, à necessidade de “[...] sistematizar zonas de tensão crítica entre o analítico e o político.” A teoria de que aqui se fala surge assim como a théoria do pensamento grego, que se afirma como projecto abrangente e crítico de observação do mundo e que contribui para o que Aristóteles considerava a finalidade da ética e da política: a obtenção da “vida boa”, configurando, contudo, a complexidade deste mundo que como nos diz Bernard Stiegler está “[...]a fazer-se, mas sempre sob a ameaça de se desfazer.”

O volume A Urgência da Teoria colige as lições apresentadas por Marc Ferro, Homi Bhabha, Paul Gilroy, Miguel Vale de Almeida, Pedro Magalhães, Danièle Cohn, Daniel Miller, Andy Pratt, Bernard Stiegler, António Cícero, Filipe Duarte Santos, Paul D. Miller e Mehdi Belhaj Kacem. Expondo um complexo mapa do modo como as ciências, da antropologia, à filosofia, passando pelos estudos culturais, pela ciência política, pelas ciências do ambiente e pela história concebem o nosso difícil momento, esta obra apresenta na sua diversidade, abordagens complementares e argumentos opostos, esboçados entre o pessimismo e a esperança, o realismo e a utopia. Concebe-se assim uma reflexão que se desloca do tópico ao u-tópico, que se ancora dentro dos limites académicos da disciplina e nesse campo reflecte sobre a ciência e o Estado do Mundo, como é o caso de Pedro Magalhães, para a Ciência Política, ou de Danièle Cohn para a Estética; ou então que lança o projecto teórico como modelo explicativo da complexidade do humano, pugnando por uma realidade a vir, como o fazem Homi Bhabha ou Paul Gilroy.

Grafando a diferente diversidade da teoria, os ensaios posicionam-se igualmente entre o discurso pedagógico e o performativo, ou emergente, segundo a designação de Homi Bhabha na obra seminal The Location of Culture. Isto é, entre o modelo de explicação ancorado na tradição e procurando no passado os traços que permitem apreender o desenvolvimento futuro; ou então outro modelo que busca uma nova racionalidade para interpelar um Estado do Mundo que se vê em Estado de Emergência, quer enquanto excepção quer como oportunidade.

No fundo, quer se opte pela distinção de Bhabha, ou pela mais científica organização entre postulados realistas e utópico-interpretativos, a diversidade de tom deste volume reflecte claramente as identidades singulares, em termos científicos, políticos, de classe, religião ou género dos seus intervenientes. E de facto é nesta clara localização do discurso, que o leitor se sente interpelado a concordar ou a divergir. Efectivamente, se característica comum existe nos ensaios apresentados para responder ao repto do curador do Fórum – e são muito mais as diferenças do que as similitudes, pelo que não desejo de modo algum encontrar aqui um denominador comum necessariamente artificial -, se característica comum existe na sua apreciação do Estado do Mundo, dizia, é a da consciência da tensão entre alocação e deslocação, emplacement e displacement. De forma directa ou indirecta, está presente a consciência de que vivemos num mundo deslocado, quer o sintamos sob a forma do cosmopolitismo da globalização hegemónica ou sob a forma do cosmopolitismo diaspórico, que Homi Bhabha denomina de vernáculo, daqueles que assumem a diáspora como condição e não como escolha.

Habitando o universo global, o gesto cosmopolita é certamente herdeiro de um olhar sobre o Outro, de uma curiosidade infinda. No caso das culturas ocidentais, este gesto, que muitas vezes se identificou com estratégias de apoderamento e imperialismo, tem vindo a ser redesenhado na modernidade reflexiva, e também sob o impulso dos estudos pós-coloniais, para retomar a problemática da cultura como modelo de afirmação identitária de grupos sub-figurados no espaço simbólico da representação. Nas sociedades multiculturais, trata-se não só de entender e respeitar o Outro no seu espaço cultural e geográfico próprio, mas sobretudo de estar atento à diferença interna, isto é, às diversas formas de que se reveste esta alteridade no seio da cultura, e de pensar em que moldes se pode subscrever ou não a afirmação de Nestor Garcia Canclíni, de que a globalização nos coloca perante a inevitabilidade da hibridação de todas as culturas.

Os fluxos globais expressam o desejo desta hibridação, mas simultaneamente o sentido de outros tantos Estados do Mundo. Exprimem a situação dos migrantes e dos exilados, dos intelectuais e dos empresários, dos terroristas, dos activistas, dos médicos e missionários. Para além das distinções sociais e políticas, nesta ética da deslocação, o que distingue entre os vários fluxos é que para alguns o não-lugar é sentido como ameaça e humilhação, ao passo que para outros se constitui em apanágio da vida boa. Neste Estado de Emergência qual será então o papel a desempenhar pelo discurso da teoria? Será na opinião dos intervenientes no volume, também um papel de deslocação e de mediação; de uma deslocação da racionalidade dos centros identitários que tornam as culturas em focos de “assassinato simbólico”, de uma deslocação do discurso das fronteiras disciplinares tradicionais, contribuindo para um desventramento do que é próprio e o seu enxerto com o alheio, seja na dimensão disciplinar, social, ética ou política. Assim se torna a teoria uma prática que afirma, intervindo, que se assume cosmopolita sem deixar de ser localizada. Os ensaios da Urgência da Teoria enunciam, assim, possibilidades de exercício deste novo cosmopolitismo, estruturando-se em torno de uma pangeia que integra quatro continentes em íntima articulação: o cuidado, a memória, a modernidade e a cultura.

Bernard Stiegler em “Tomar cuidado. Sobre solicitude no século XX” apresenta uma ética do cuidado como estratégia para ultrapassar as contradições do fluxo tecnológico do presente. Sem se barricar num posicionamento ludita, Stiegler retoma as teses desenvolvidas na trilogia La téchnique et le temps (2001), onde articula a intimidade entre os processos de renovação tecnológica e as modificações sociais e estuda o papel das novas tecnologias na destruição da atenção nas sociedades contemporâneas. Stiegler articula um problema central da modernidade, já tematizado por Gustave le Bon, no final do século XIX, e por Walter Benjamin e Georg Simmel, no início do século XX, o problema da distracção e da incapacidade de selecção entre os impulsos tecnológicos produzidos pela modernidade. Contra este crescente síndroma da atenção deficiente, Stiegler propõe uma nova ética do cuidado, centrada na educação como nootécnica, isto é, como técnica de formação intelectual e espiritual e não apenas reduzida à sua dimensão sensitiva e nutritiva. Trata-se de recuperar a empatia com o que se aprende, presente nas desvirtuadas mnemónicas e singularmente representada na feliz expressão inglesa “to learn by heart”. Trata-se também de encontrar com esta nova ética do cuidado na formação modalidades de existência “menos tóxicas, mais úteis à humanidade.”

O cuidado afirma assim o desejo de uma nova sustentabilidade espiritual, que se articula com o discurso ecológico de Filipe Duarte Santos em “Sustentabilidade, Cultura e Evolução”, onde o desenvolvimento económico e o desenvolvimento cultural se apresentam como formantes de um modelo global que apenas em articulação dinâmica, e para além do que o autor denomina o discurso dos limites e o discurso prometeano, podem “tornar admirável o nosso mundo e a nossa qualidade de vida”. Também a estética, no entrecruzar do biológico, da dor, com a representação enuncia uma teoria do cuidado em latência, discutida por Daniéle Cohn em “As artes, o verdadeiro, o justo”. Questionando-se se “Não olhámos sempre para a dor dos outros?” Cohn recupera a reflexão sobre a articulação entre o sofrimento e a arte, a piedade e a liberdade, que desde os gregos, a Edmund Burke e mais recentemente com Susan Sontag, se apresenta como ancilar no modo como as sociedades se auto-representam e representam o Outro. Não é por acaso que a teoria estética romântica associa a excepção do génio à excepcionalidade da dor na tópica representação do artista doente e sofredor. A questão que Cohn nos coloca é no entanto outra. Assumindo a beleza da forma em sofrimento, a partir de uma discussão da teoria estética de Kant, a Lessing e Goethe, em torno da escultura grega Laocoonte, Cohn encontra na arte uma força espiritual, de tom certamente essencialista, mas que em interacção permite uma pedagogia do cuidado com o Outro sofredor. “A piedade é uma pedagogia da liberdade”, escreve, recuperando uma visão empática e potencialmente ética da arte.

Posicionamento diferente é aquele que nos traz Paul Gilroy em “Multicultura e convivialidade na Europa pós-colonial”, resumindo as teses de After Empire: Multiculture or Postcolonial Melancholia, onde chama a atenção para o apagamento do sujeito colonial da narrativa ética e estética da teoria europeia. Central nas teses de Gilroy é a discussão em torno do que as sociedades do centro consideram o inassimilável, as identidades marginais pela raça, pelo sexo, pela classe ou pela orientação sexual. Contudo, Gilroy propõe-se ler o Iluminismo como uma contra-história no sentido foucaultiano, relevando o seu potencial emancipatório e renegando as teologias da origem. Apresenta assim como proposta para a construção de uma ética do cuidado, uma nova convivialidade, que possibilite a superação da mentalidade melancólica relativamente aos binarismos que subentendem a estrutura colonial e imperial do centro. Trata-se aqui de afirmar o cosmopolitismo como cuidado e não como privilégio, a afirmação de um cosmopolitismo enraizado (rooted cosmopolitanism) onde as identidades se contactam de modo compreeensivo e para o qual a narrativa literária e a figuração estética contribuem de modo decisivo.

Modalidade essencial para a formação das identidades, ancilar na construção das nações, a memória apresenta-se no ensaio de Marc Ferro sob a sua roupagem mais obscura, isto é, como motor do ressentimento. Se é certo que o historiador dos Annales não deixa de reconhecer à historiografia uma carga terapêutica, contudo, assinala que o “ressentimento é um explosivo cuja carga não pára de acumular.” Apresentando-se talvez como o texto mais sóbrio, mas também mais pessimista, o ensaio de Ferro constata o conflito entre as ideias de progresso que a globalização não cumpriu e o ressentimento daqueles que não participam deste ideal, avisando que “o amanhã não será sorridente.” Carregado com a sobriedade da experiência, o ensaio de Marc Ferro denota o sentimento da Unheimlichkeit freudiana, apreendendo a história como projecção alienada das pulsões negativas dos indivíduos, mas com ela se comprometendo como com um lar assombrado que não pode nem quer deixar de habitar. Com um texto singularmente intitulado “Niilismo e democracia”, Mehdi Belhaj Kacem habita também a casa assombrada agora pelo espectro do niilismo, tornado narrativa legitimadora da modernidade democrática e das suas instituições. Pensador radical que habita uma modernidade centralizadora, Kacem enceta um diálogo com a tradição intelectual europeia e a sua memória selectiva quer no que diz respeito às narrativas fundadoras da nação quer ao seu esforço de reparação traumática. Observando, tal como Gilroy anteriormente, a sobreposição da narrativa traumática do passado colonial pelo trauma de Auschwitz, que funda o moderno niilismo democrático, Kacem, ao contrário de Ferro propõe a negatividade como terapia, “quem quer a paz deve recusar a história”, chamando a atenção para o grande efeito terapêutico do niilismo democrático, o de recusar as origens e as genealogias como argumento legitimador da auto-consciência dos povos e dos Estados.

A cartografia da modernidade como um “território em que tudo é fluxo” surge pela mão de Paul D. Miller em “Estranho/Desfiado”. Assumindo a condição tecnológica da electromodernidade como fundadora deste fluxo de impactos e interpelações, produzidos por saturação mediática, o ensaio de Paul Miller coloca-se quiçá no ponto oposto à argumentação de Stiegler. O músico Miller observa a deriva da realidade como uma “alucinação consensual”, marcada pela diversidade de planos polifrénicos que provocam a abstracção da essência humana. Num mundo em estado virtual, Paul D. Miller vê na arte e na cultura a tarefa hercúlea de “abordar a pluralidade dos reais”, tornando-os pedagogicamente acessíveis aos indivíduos, que o habitam. Este herdeiro de Baudrillard, afirma enfaticamente “a realidade acabou” e apela na ecologia visual do ensaio, constituído por interpelações, impactos, à rehumanização do cidadão moderno através de uma arte conciliada com o universo tecnológico-digital que habitamos.

Em tom diferente e não virtual, Pedro Magalhães discute uma questão perene da prática da ciência no âmbito das chamadas ciências sociais e humanas. Em “A Ciência da Ciência Política” pergunta-se “O que significa fazer ciência quando se estuda a política?”. Retoma em novo contexto, aplicando-a a uma das áreas legitimadoras da narrativa contemporânea: a ciência política, a questão que já em 1959 C.P. Snow se coloca na Rede Lecture e que está na origem de The Two Cultures: a da cientificidade das ciências sociais. De forma meticulosa, o autor debate os argumentos em torno dos pressupostos realistas ou interpretivistas, concluindo que também nesta prática académica: “as[...] melhores estimativas dos efeitos de uma [...] variável explicativa estão crucialmente dependentes das nossas pressuposições.” Constata-se afinal, como referia Karl Popper, que toda a ciência, por mais abstracta, empírica e quantitativa que seja, é sempre fundamentalmente humana, já que se constrói sobre pressupostos contingentes, localizados e singulares. O político, mesmo na sua versão científica, também é cultural.

Afinal, apesar da aparente distância dos argumentos, encontramo-nos neste ensaio, como no do antropólogo Daniel Miller (“Sociedades muito grandes e muito pequenas”) perante a lógica cosmológica da modernidade, na sua ânsia de abarcar através de modelos explicativos, seja de ordem empírica ou filosófico-cultural, uma realidade plural, em constante mutação, e em que os pressupostos têm uma validade efémera. Se para Pedro Magalhães a resposta é a abertura a uma abordagem pluralista do real, que possa fornecer generalizações robustas, Daniel Miller propõe em tom utópico a articulação entre um modelo de reflexão flexível e em construção e a acção individual. Num novo esforço de entendimento do real que define como uma “nova cartografia antropológica”, Miller propõe um modelo assente no facto de: “sentirmos que a nossa capacidade de compreender procura acompanhar a nossa capacidade de mudar o mundo.”

O ensaio de Homi Bhabha, já referido, reproduzindo a lição inaugural do Fórum, percorre efectivamente os quatro aspectos em que organizei esta reflexão: cuidado, memória, modernidade e cultura e funciona quase como uma reflexão metateórica relativamente aos restantes ensaios. Discutindo como problema central do nosso tempo: a complexidade da diversidade cultural e o seu impacto na distribuição de riqueza, Bhabha define a ambivalência como a característica marcante deste nexo global, marcado desde logo pela articulação entre a conectividade tecnológica e a cultura. Na ambivalência híbrida das nações alheias da modernidade (tradução feliz de alien nation), é necessário o direito à narrativa, que por um lado configure modelos de pertença de comunidades minoritárias, mas que torne a cultura em acto performativo, isto é, modelo terapêutico de um diálogo intercultural assente na imaginação, sem nunca descurar o exame crítico, a dúvida e a deliberação. Bhabha, professor de literatura inglesa na Universidade de Harvard, propõe um modelo de resolução que passa pela abertura da narrativa própria ao alheio, ou melhor que se funda na reescrita da narrativa própria pelo alheio. Não posso deixar neste ponto de recordar as teses que um deslocado moderno, o poeta Hölderlin, defendia no final do século XVIII relativamente a uma outra interacção dinâmica entre uma então emergente cultura alemã e o modelo hegemónico da cultura clássica. Também para Hölderlin, o desventramento era necessário. Num modelo incompreensível para os seus contemporâneos, defendia que apenas ao alheio era possível percepcionar o que nos é próprio, ou seja numa estética de articulação defendia que do mesmo modo que apenas os gregos poderiam conceber o que era de facto alemão (das Eigene, o que nos é próprio) também aos alemães cabia o entendimento do que lhes era estranho (das Fremde). Homi Bhabha defende afinal como ética da modernidade um modelo de cosmopolitismo, que denomina de vernáculo, assente na articulação entre os grupos hegemónicos e as minorias, e num pressuposto da tradução e da transferência das narrativas, que figure um sentimento de pertença cívica assente numa linguagem de interpretação intercultural.

Concluindo igualmente pela necessidade da democratização das narrativas, Miguel Vale de Almeida em “Da Diferença e da Desigualdade: Lição de Experiência Etnográfica” ensaia uma discussão sobre a cultura como problema e solução para um agenciamento democrático das minorias. Se de um lado se torna urgente a crítica à cultura enquanto “conjunto de atributos essencializados”, aspecto em que reside igualmente a crítica de António Cícero, por outro, Vale de Almeida reconhece que as políticas identitárias de resistência assentes na raça e na cultura são fruto de um recalcado sistema imperial-colonial e que o multiculturalismo politicamente correcto não conseguiu de todo resolver. Se não for entendida da perspectiva de uma diferença que reifica e menoriza, mas enquanto prática de uma cidadania cosmopolita, a cultura apresenta-se como estratégia produtiva e caminho para uma efectiva hibridação dos discursos, ancorados no processo histórico, purgados de anseios de excepção e excepcionalidade e assentes numa consciência transcultural de contaminação produtiva. Aplicando a reflexão teórica a uma crítica do discurso da excepcionalidade do modelo colonial português e aos seus avatares, as teses do lusotropicalismo ou da lusofonia, o antropólogo avisa que a narrativa cosmopolita não pode ser reificada no campo do cultural, na consciência de que uma praxilogia renovada da cultura passa necessariamente pela articulação entre o cultural e o político. Tal como para Bhabha, as construções simbólicas apresentam-se como estratégias singulares para apreender a complexidade e a desigualdade, como terapêuticas de sublimação, estratégias de negociação com o real produzidas no entrecruzar do social com o político.

Ora é precisamente este terrível conceito, a cultura, que António Cícero, em tom crítico se propõe suplantar pela mais cosmopolita noção de civilização no ensaio “Da actualidade do conceito de civilização”. Considerando o conceito de cultura como responsável pelo barbarismo da modernidade, evocando uma acepção tradicional que recorda a lapidar definição de Norbert Elias de cultura como a “auto-consciência da nação”, Cícero repudia o novo tribalismo que políticas essencializadas da cultura consigo trazem e no espírito de um novo racionalismo propõe uma recuperação do modelo civilizacional como legitimador da condição cosmopolita daquele que “se comporta no mundo como numa cidade da qual é cidadão”. A razão, e a dúvida sistemática, dela resultante, apresentam-se como estratégias para uma nova tolerância. Recorrendo ao discurso de Montaigne sobre as assimetrias culturais, criticando a cegueira etnográfica de Lévi-Strauss, Cícero critica o potencial democrático da cultura recuperando um conceito de civilização mais paritário, menos marcado pelas hegemonias, superando os nacionalismos, mas que afinal, esquece Cícero, mas que urge recordar, está igualmente eivado de mácula, já que foi também ele usado como referência a uma visão do mundo etnocêntrica e elitista, disseminada desde o séc. XVIII, pelo imperialismo napoleónico. A bondade do ensaio assenta num apelo à urgência de reflexão crítica sobre os conceitos, à dúvida como método à consciência da falibilidade da razão, e afinal à urgência da teoria.

Os ensaios de Bhabha, Gilroy, Vale de Almeida e de António Cícero discutem as vantagens e desvantagens da cultura para a vida, sem descurar é certo a sua dimensão pragmática, mas situando o discurso num plano simbólico-político. O ensaio de Andy C. Pratt, “O estado da economia cultural” parte da constatação da mercantilização e da democratização da cultura como facto e não como problema, discutindo os impactos económicos da cultura, seja no factor do bem-estar das populações, no contributo para o PIB, na regeneração geográfica de espaços ou na inclusão social. A economia da cultura, apesar da dificuldade assumida de contabilizar o impacto material do produto e da escassez de indicadores, surge na acepção de Pratt como verdadeira prática de sustentabilidade das populações. Se é certo que nem todos podemos ser vencedores nas guerras culturais, como refere no seu ensaio, é certo que mesmo a dimensão terapêutica da arte, da literatura e da cultura se torna visível nos espaços mais inesperados, tal como na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, onde no mês de Agosto último a arte tutelou as tréguas nesta zona de guerra, durante a apresentação do Festival de Rua do Centro Cultural da Rua 2.

Na reflexão sólida e séria apresentada em A Urgência da Teoria lê-se que é urgente dar uma nova centralidade ao pensamento crítico, que é urgente tratar a cultura não apenas como folclore dos Estados ou de minorias enclausuradas, como reduto de “identidades assassinas”, mas como espaço de emergência de uma nova racionalidade ético-política. Valeu a pena esta busca de soluções teóricas para as crises do tempo presente, que o gesto esperançoso de Rui Vilar na sua apresentação ao volume projecta na busca de “uma outra educação, de um outro papel para os intelectuais, numa nova negociação cultural”. Trata-se afinal de verificar como a teoria pode quebrar o mar gelado que nos rodeia (Kafka) e afirmar-se como reduto de esperança, ainda que, como refere Homi Bhabha de modo exemplar: “ [...]os ventos de mudança soprem com violência contra a porta da história.

ISABEL CAPELOA GIL, 28 de Setembro de 2007

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segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Zoom


Yun-Fei Ji, Last Days Before The Flood, 2006

A Barragem das Três Gargantas, no Rio Yantze, é a maior construção realizada na China, desde a Grande Muralha. Por causa deste projecto, cerca de dois milhões de pessoas, das províncias de Sichuan e Hubei, tiveram de ser realojadas para escapar às inundações. Este tem sido um tema central na obra de Yun-Fei Ji (Pequim, 1963) - que vive actualmente em Nova Iorque.

À distância, paisagens envoltas na bruma. Aproximando o olhar, os pormenores nas telas ganham nitidez, telas que combinam uma técnica tradicional de pintura, à base de pigmento mineral e papel de amoreira, com a história contemporânea chinesa.

Na exposição Um Atlas de Acontecimentos, Yun-Fei Ji apresenta cinco obras na galeria superior de exposições temporárias, da sede da Fundação Calouste Gulbenkian.

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quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Convite


(clicar para aumentar a imagem)

A inauguração realiza-se este sábado, às 22h, com entrada livre. A partir de domingo a exposição estará aberta ao público nos seguintes horários:

Terça a sexta: 10:00h-18:00h
Sábado: 10:00h-22:00h
Domingo: 10:00h-18:00h

(Galeria de exposições temporárias da sede da Fundação Calouste Gulbenkian, pisos 0 e 01)

A exposição Um Atlas de Acontecimentos encerra o programa internacional e multidisciplinar que foi o Fórum Cultural O Estado do Mundo, no âmbito das comemorações dos 50 anos da Fundação Calouste Gulbenkian. A exposição é constituída por obras, em muitos casos produzidas especificamente para esta mostra, de 28 artistas vindos de muitos países e diferentes regiões culturais.

Num contexto de incerteza intensa, sentido a nível individual, local, regional e internacional, propomos Um Atlas de Acontecimentos, uma exposição colectiva de artistas oriundos de diferentes partes do mundo, cujas abordagens pessoais e sociais às suas respectivas práticas artísticas sublinham dilemas, histórias, narrativas e perspectivas que poderiam, de outra forma, ser negligenciadas ou ignoradas. Esta exposição não tenciona ser, de modo algum, totalmente abrangente. Isso seria, claro, uma tarefa impossível. Em vez disso, trata-se de um esforço modesto e, esperamos, significativo para juntar visões do mundo muito diferentes, apresentadas por artistas que nos oferecem reflexões cuidadosamente observadas, que revelam a complexidade da forma como o «político» é sentido de um modo simples e quotidiano, pedindo a cada um de nós que repensemos as nossas suposições acerca das condições que estão para lá das nossas experiências.

Os curadores: António Pinto Ribeiro, Debra Singer e Esra Sarigedik Öktem

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sábado, 29 de setembro de 2007

Lounge tropical


Sergio Vega, Crocodilian Fantasies


"O projecto Paraíso no Novo Mundo é baseado num livro de Antonio de León Pinelo escrito em 1650, que expõe a teoria segundo a qual o Jardim do Éden situar-se-ia na América do Sul. Depois de ter lido o livro, parti, como um desses monges do cristianismo primitivo, numa viagem em busca do paraíso. Depois de muitas picadas de mosquito e encontros com papagaios, crocodilos e quartos sem ar condicionado, encontrei o Jardim do Éden no Mato Grosso (Brasil). Foi então que senti a urgência de relatar as notícias da minha descoberta ao mundo: comecei a redigir um diário íntimo e a produzir séries de fotografias, desenhos, vídeos e instalações baseadas nesta experiência. O diário funciona como um recipiente no qual o mito do paraíso, a história colonial e as condições socio-económicas actuais do lugar são rearticuladas com o relato dos encontros espontâneos de um viajante." (tradução nossa da nota de intenções do artista, a propósito da sua exposição individual em 2006, no Palais de Tokyo, em Paris)

É assim que Sergio Vega (Buenos Aires, 1959) descreve o projecto em que tem vindo a trabalhar há anos e do qual irá apresentar parte em Lisboa, na instalação Crocodilian Fantasies, que pode ser vista a partir da próxima semana na exposição Um Atlas de Acontecimentos (até 30 Dezembro).



The myth of South America as "paradise found" started with Columbus when he asserted in a letter to the Queen of Castilla that the entrance to terrestrial paradise was at the mouth of the Orinoco river. Columbus traveled with a copy of Marco Polo's Voyages. The Gulf of Paria resembled the description Marco Polo made of a place in Asia he had taken for the Garden of Eden. The confirmation of a previous text is a substantial part of discovering, which makes the newly discovered thing not exactly new.

Pinelo's thesis was based in the re-articulation of several previous theories about the location of Eden. In 1629 Jacques de Auzoles' treatise Saincte Geographie located Eden in the center of South America. In Pinelo's version, Eden was not a rectangular garden, but a circular territory of 160 leagues (510 miles) in diameter, and the Paraná, the Amazonas, the Orinoco and the Magdalena where the four rivers of paradise. Pinelo's text reflected the intellectual transitions of the seventeenth century: it attempted to reconcile a theological account of creation, with a scientific view of nature derived from the newly developing discipline of Natural History.

When I decided to embark in the search of Pinelo's paradise I only had a copy of his book, a map drawn by Pedro Quiroz in 1617, and an airplane ticket. I was destined to reach into the very heart of South America and flesh things out on my own. Thus the journey of discovery begun bound to become the confirmation of a previous text, which was in itself the revision of a preceding one, and so on and so forth in a vast, never ending cacophony of echoes that went through Dante and Marco Polo all the way back to the old testament.(...)

www.sergiovega-art.net

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sexta-feira, 28 de setembro de 2007

Espaço de reflexão II

«Que papéis podem desempenhar as imagens de satélite, os mapas, os sistemas de informação geográfica, ou os modelos baseados na teoria dos sistemas complexos na construção e difusão de discursos emergentes sobre o território?» [Professor Doutor José António Pereira Tenedório]

Mais uma questão lançada na Pós-Gradução em Culturas e Discursos Emergentes: da crítica às manifestações artísticas, a que responde Mónica Guerreiro:

Na minha abordagem a esta questão, devo antes circunscrever o alcance dos conceitos tal como os pretendo operar. Relativamente a “discursos emergentes sobre o território”, procurarei reportar-me à renovação dos discursos (ou seja, dos imaginários que são produzidos culturalmente e cuja difusão pertence aos mais diversos fóruns civilizacionais: académicos, artísticos, etc.) sobre a percepção que o homem faz do território que habita – e que imagina. Ou seja, a forma como o homem percebe, racionaliza e questiona a sua própria existência e dimensão. Nesse sentido, torna-se evidente que o conhecimento sobre a terra se actualizou irremediavelmente pela evolução da cartografia, a qual responsabilizamos pelo contributo para a geração de imaginários e discursos – míticos, ficcionais, literários, sagrados – sobre a aquisição de conhecimento da morfologia terrestre. Além de representarem um território, as cartas e os mapas exprimem graficamente a ideia que o homem faz do mundo real. Dado que a tecnologia espacial ampliou em muito as possibilidades da cartografia, as fotografias tiradas a grande altitude permitem uma rigorosa actualização das cartas topográficas: e as imagens recolhidas por satélites ampliaram exponencialmente o alcance do nosso olhar, logo, do nosso conhecimento.

Ao repensar a sua relação com o mundo, o homem necessitou primeiro de se confrontar com a falência da sua própria imagem como referente – e medida – de todas as coisas. A arquitectura terá tido um contributo fundamental para a alteração deste paradigma. Como escreveu Toyo Ito , “A visão do mundo muda radicalmente segundo o modo como se interpreta o corpo humano (...). Se recordarmos a imagem da figura humana concebida por Vitrúvio, percebemos que tanto para Alberti quanto para Da Vinci o círculo e o quadrado são figuras geométricas perfeitas, que melhor se enquadrariam com a natureza. A figura masculina desenhada por Leonardo Da Vinci, com as quatro robustas extremidades estendidas, está inscrita dentro de um círculo e dentro de um quadrado, mantendo uma postura simetricamente estética, com uma expressão cheia de dignidade. Tais figuras testemunhariam a harmonia e perfeição do corpo humano e demonstrariam uma verdade profunda e essencial acerca do homem e do mundo”. Mais uma vez, imagens e projecções: produção discursiva.
Depois de Vitrúvio, e depois do Renascimento, não faltam reformulações e condenações deste modelo “humano” – frequentemente confundido por um modelo “humanista”, segundo o qual os grandes pólos urbanos, habitados por arranha-céus, teriam descaracterizado a “escala” humana que se atribuíra às cidades. Podemos revisitar esta acepção, por exemplo, em Pinto Ribeiro : “As cidades podem ser vistas ou apreciadas de avião, de carro, a pé ou de transporte público e os diversos pontos de vista que delas podemos ter não são irrelevantes. Há cidades que são belas quando sobrevoadas e se tornam monótonas quando visitadas a pé (...). A maioria das nossas cidades tem perdido a escala que seria mais adequada à sua fruição enquanto espaço, arquitectura, urbanismo e coreografia, porque a medida do cidadão pedestre – que deveria ser medida reguladora das cidades – tem sido preterida em favor do automóvel, actual meio prioritário de ocupação da cidade. Com esta nova medida, que impõe novos hábitos e altera a qualidade de vida, alterou-se também a vivência do cidadão na sua cidade”.
Considero então que a nossa experiência do mundo, enquanto vivência não apenas empírica mas também imaginária, porque produzida por outros olhares e portanto numa experiência relacional, de alteridade, é o fundamento para a discursividade que sobre esse mundo narrativas infindas vêm gerando. Não deverá surpreender-nos, pois, que a dimensão espacial dessas imagens – uma dimensão para a maioria de nós inalcançável, mas para muitos ainda inconcebível – provoque reverberações mais profundas no questionar da relação do humano com o espaço do mundo. Quando em Julho de 1969 os primeiros humanos aterraram na lua, as imagens fotográficas e fílmicas transformaram a forma como nos vemos a nós próprios e ao nosso planeta. Quisemos crer naquele acontecimento como símbolo da conquista do que seria o último limiar do território físico: mas há quem defenda que este feito tecnológico teve como principal intuito um efeito discursivo.
Cito J. Jones : “Para a maioria de nós, a lua permanece um objecto puramente visual; a única prova de que o homem lá aterrou é fotográfica. Houve teorias da conspiração de que as imagens eram forjadas. E como as intenções futuras da NASA em relação à lua se revelaram algo nebulosas, têm-se tornado evidente que Apolo 11 e as missões subsequentes eram tanto golpes publicitários quanto outra coisa qualquer, e foram levadas a cabo, em grande parte, para tornar possíveis imagens como estas”. Ou seja, para possibilitar a geração e difusão de discursos em torno de conceitos como poderio económico (dos Estados Unidos), conquista espacial, anexação territorial e superioridade da espécie humana, capaz de transpor até as mais improváveis fronteiras. Não por acaso, 2001 Odisseia no Espaço (1968), de S. Kubrick – que antecedeu em um ano a alunagem – interpretou metaforicamente a conquista espacial enquanto evolucionismo.
Na última década, as centenas de milhar de fotografias enviadas pela Mars Global Surveyor , também da agência espacial norte-americana (que em Novembro de 2006, porém, perdeu contacto com a sonda), revelaram-nos a aparência daquele planeta tão mais misterioso: mas a ausência da figura humana nessas imagens não lhes concede o carácter marcante que tiveram os retratos de Aldrin e Armstrong a tactear a superfície lunar. A dimensão do homem deixou de servir, efectivamente, para tomar a medida de algumas coisas, que se provaram ser grandes demais. Mas a nossa imagem, a figura do ser humano, continua a servir para dar referência e, principalmente, escala, às leituras do território.
No século que ficou conhecido – entre tantos e dissemelhantes epítetos – como o século da generalização da luz artificial, o olhar do homem transformou-se. Não passámos a ver apenas para lá no globo terrestre: passámos a ver à noite. “A expansão da energia eléctrica provocou uma transformação radical dos modos de vida e das condições de trabalho, culminando na transformação completa da vida nocturna das cidades. Ao longo do final do século, com a consciência da centralidade do conceito de energia, os fluxos energéticos foram interpretados como integrantes da actividade humana à própria constituição do universo”, explica Montaner . Adquirida a distância, conquistada a tecnologia, o olhar humano permitiu-se ver além do que até então imaginara: “Os levantamentos aéreos e a fotogrametria tornaram possível a representação cartográfica da maior parte da superfície terrestre. A medição electrónica das distâncias por meio de raios laser e da luz, a realização de cartas fotográficas de projecção ortogonal, as imagens transmitidas por satélites, permitiram a reconstituição cartográfica de zonas quase inacessíveis” . As imagens produzidas por equipamentos de detecção remota transportados por satélites são sensíveis a secções do espectro electromagnético invisíveis ao olho humano.
Este prolongamento do olhar, coincidente com uma sensação de omnipresença, opera um efeito de redução sobre o mundo, segundo Pinto Ribeiro : “O mundo parece pequeno e os seus limites geográficos parecem-nos controlados e ao alcance de qualquer um. É uma ilusão de percepção construída pela tecnologia que suporta os actuais mecanismos da informação (e sua circulação). Outra construção deste sistema é a ideia de que nada fica de fora e tudo é abarcado por um fluxo de informação homogénea, da qual não há um restante, e nada é excluído”. A dimensão do homem torna-se então tão pequena – ou tão grande – que levou à criação, uma vez exaustivamente cartografado este mundo, de um outro, esse sim infinito: a Internet. A ideia deste arquivo em permanente construção deixa de ser um mapa do mundo para se tornar na concretização da metáfora Borgiana do mapa que representa o mundo à escala natural. Mas é um mundo fragmentário, necessariamente subjectivo, uma representação visual da conceptualização do mundo.
Um mundo anunciado (mais uma vez, no cinema, fábrica dos imaginários colectivos) em Blade Runner (1982), de R. Scott: retrato de uma sociedade heterogénea, composta por sobreposições e simultaneidades, mundo de misturas e não de segregação, onde alguns protagonistas falam uma língua franca resultante da hibridação do inglês. É a figuração acabada da Internet e da sua qualidade rizomática. O filme antecipou a condição fragmentária da pós-modernidade: e construiu uma concepção do mundo em que se vive de noite, segundo o fluxo incessante da iluminação artificial. Para Pinto Ribeiro , a paisagem nocturna da cidade é precisamente uma aquisição da técnica cinematográfica, porque “O cinema é para a cidade contemporânea o que a pintura foi para a Natureza do século XIX (...). A pintura havia-nos dado o dia, o alvorecer, o anoitecer e até cenas domésticas à luz das velas ou do fogo; mas a noite da cidade é-nos oferecida pelos equipamentos tecnológicos que o homem criou para superar o medo do escuro: os néons, os edifícios iluminados, os faróis dos carros, os interiores iluminados dos apartamentos. A paisagem nocturna é a prova do apaziguamento entre a tecnologia e a natureza”.
Mas talvez “apaziguamento” não seja a melhor forma de caracterizar esta relação. O cinema preserva ainda uma escala humana: um olhar enquadrado, montado e projectado, mas ainda um olhar humano. A realidade actual exige-nos que observemos a paisagem nocturna com o olhar supra-humano que encontramos fixado nas fotografias nocturnas feitas por satélite. Estas fotos mostram as áreas e os focos de luz na dureza terrestre, ou seja, os núcleos de concentração metropolitana da vida humana, o que tradicionalmente foi denominado como progresso. Como descreve Montaner , as imagens evidenciam “a extrema urbanização do leste dos Estados Unidos, o isolamento das massas metropolitanas da América Latina, a densidade urbana das ilhas japonesas, o vazio na África, a urbanização total da periferia da Península Ibérica e, destacando-se acima de tudo, a denominada blue banana, ampla faixa de luz artificial que vai de Manchester, Liverpool, Londres até Milão, passa pelos Países Baixos, o Ruhr, Hamburgo, Frankfurt e se estende a Berlim, Praga e Viena, que demonstra a coluna vertebral da industrialização europeia”. O próprio conceito de blue banana está inclusivamente a ser ultrapassado pela emergência de discursos em torno do futuro da Europa, que identificam uma sunbelt de Milão a Valência e uma yellow banana no eixo Paris-Varsóvia em direcção ao leste europeu, afirmando pólos de crescimento industrial para lá na centralidade.
As fotografias nocturnas do planeta constituem uma abordagem emergente à realidade territorial e social da nossa civilização: exibindo os índices de actividade metropolitana durante a noite, revelam o estádio de modernização de cada território e também a herança da sua própria história. Ainda, propiciam a construção de discursos social e politicamente comprometidos, ao denunciar a poluição lumínica e o desperdício, mostrando a desigualdade entre os povos e o seu consumo energético. Estas imagens evidenciam a capacidade da espécie humana de organizar o ambiente, de modificar a cartografia percebida, construindo uma nova relação com o mundo, que, para Montaner , é determinada pelos fluxos energéticos: “as pegadas impressas na paisagem pelo ser humano, este ser capaz de criar e consumir tanta energia exosmótica, que transforma continuamente o espaço, que é essencialmente arquitecto, engenheiro, urbanista, designer e construtor”.
Determinada pela presença humana, a imageologia da Terra é continuamente modificada pelo nosso conhecimento e pelos desenvolvimentos na forma de produzir, aceder e divulgar essas imagens. A apropriação pela cultura – e particularmente pelos discursos artísticos, da literatura ao cinema – das formas de organização espacial e da percepção desses registos imagéticos (ainda mais no pós-Google Earth ) acrescenta camadas significantes, ao democratizar as possibilidades discursivas em torno das imagens. (Mónica Guerreiro)


Bibliografia
1. Toyo Ito, apud Josep Maria Montaner, As Formas do Século XX, Editorial Gustavo Gili, Barcelona, 2002, p. 239.
2. António Pinto Ribeiro, “A minha cidade são cidades”, in Abrigos. Condições das cidades e energia da cultura, Edições Cotovia, Lisboa, 2004, pp. 17-18.
3. Jonathan Jones, Photos That Changed the World. The 20th Century, ed. Peter Stepan, Prestel, London, 2006, p. 124.
4. In http://mars.jpl.nasa.gov/mgs/.
5. Josep Maria Montaner, As Formas do Século XX, Editorial Gustavo Gili, Barcelona, 2002, p. 220.
6. VV.AA. Grande Atlas do Mundo, Público/Edições Temas da Actualidade, 1993, p. 99.
7. A. Pinto Ribeiro, “Abrigos”, in Abrigos. Condições das cidades e energia da cultura, Cotovia, Lisboa, 2004, p. 155.
8. A. Pinto Ribeiro, “Planta de cidade a que não falta a paisagem”, in Abrigos Condições das cidades e energia da cultura, Edições Cotovia, Lisboa, 2004, pp. 32.
9. Josep Maria Montaner, As Formas do Século XX, Editorial Gustavo Gili, Barcelona, 2002, p. 222.
10. Gert-Jan Hospers (2002) Beyond the Blue Banana? Structural Change in Europe's Geo-Economy, in www.ersa.org/ ersaconfs/ersa02/cd-rom/papers/210.pdf
11. Josep Maria Montaner, As Formas do Século XX, Editorial Gustavo Gili, Barcelona, 2002, p. 222.
12. Um exemplo de apropriação política: http://pundita.blogspot.com/2006/12/google-earth-as-tool-for-democratic.html.

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