terça-feira, 25 de setembro de 2007

Espaço de reflexão

FACE AO LEGADO CULTURAL DA HISTÓRIA DO SÉCULO XX QUE PROGRAMA CULTURAL SE TORNA URGENTE CONCEBER?

Esta foi a questão lançada no seminário "O Estado do Mundo", no âmbito do Curso de Pós-Graduação em Culturas e Discursos Emergentes: da crítica às manifestações artísticas. Publicamos aqui o trabalho de Rosário Salema.

Para uma reflexão sobre o legado cultural da história do século XX proponho uma análise da história dos Mapas e dos Museus na Europa. Estes sistemas constituem, respectivamente, formas de representação gráfica e cenográfica do mundo e protagonizam de forma relevante, a construção de centralidades ao longo da história. A escolha destes exemplos é uma entre inúmeras possibilidades.



A história da Europa através dos Museus e Mapas
No livro “o estado do Mundo” Moira Simpson faz uma análise do conceito actual do Museu e propõe-nos novos modelos para o futuro. Interessou-me particularmente a reflexão sobre a sua origem e evolução.
Com o Renascimento surgem na Europa as primeiras colecções privadas. Estas colecções reflectem o poder, a posição e a visão do mundo do colecionador (Simpson, 2006, p.128). Os Governos e instituições privadas adquirem as suas colecções e criam espaços onde classificam, ordenam e relacionam objectos e culturas. Os museus públicos são os mostruários do mundo (ibid., pg.128).
No século XIX os museus constroem um modelo de representação do mundo, através do qual a “História” ocidental consolida a sua soberania cultural face à imagem primitiva e exótica que alimenta dos povos colonizados. Nas múltiplas estratégias de propaganda colonial, os museus testemunham a expansão dos impérios coloniais e os sucessos das políticas governamentais imperialistas.
Nestes espaços, os objectos sagrados são retirados do seu contexto e a propriedade cultural e religiosa indígena é alienada, em abono da construção e consolidação da identidade dos Estados coloniais. A atitude centralizadora reflecte-se, de igual modo, no interior dos países colonialistas, ao hierarquizar os vários tipos de produção cultural autóctone. A cultura popular dos Estados-Nação, traduzida em folclore face ao coleccionismo (Cancllini, 1997), é colocada em museus cujo conceito se cola aos museus etnográficos. Espaços distintos para os Museus de arte popular e os Museus de arte culta. A formação de colecções especializadas de arte culta e folclore foi, na Europa (...) um dispositivo para organizar os bens simbólicos em grupos separados e hierarquizados (Simpson, 2006, p.132).
Com a emergência do movimento Moderno o Ocidente inicia um processo que questiona a utilidade de Obras coleccionáveis. As colecções de objectos fora de contexto e a reconstrução de ambientes fora do lugar, são experiências do vazio, comparadas com as viagens por esses “mundos”.
Os museus, nomeadamente os Universais, consolidam e perpetuam uma concepção do mundo construída a partir da narrativa daquele que classifica, escolhe e mostra.
Será possível conhecer os “mundos” numa visita a um Museu Universal?

Em 1595, quando Mercator desenha o mapa do mundo, com base na informação dos navegadores, a Europa ocupa o lugar central. Este mapa representa uma realidade distorcida. É notória a desproporção entre a representação do centro, a Europa, e os outros territórios. Os Estados coloniais são representados de forma sobredimensionada relativamente aos territórios colonizados. Não se tratava de desconhecimento científico. É a representação do sentimento hegemónico da Europa - o Eurocentrismo - que ainda hoje continua a irradiar os meridianos a partir de Londres, alegando interesses para a navegação aérea.
Em “The Iconography of Landscape”, num estudo elaborado por Denis Cosgrove e Stephen Daniels são apresentados três parâmetros frequentemente utilizados para manipular e enquadrar informação contida nos mapas. O primeiro, a estrutura geométrica, determina a forma de focar o olhar do observador no centro do mapa. É o caso do mapa de Mercator com a Europa ao centro. Mas também o mapa Islâmico com Meca ao centro, o Cristão com Jerusalém, etc.
O segundo, o silêncio dos Mapas, permite manipular a informação sobre um território, omitindo vários tipos de informação de conteúdo político. Muitos mapas coloniais omitiam as povoações indígenas, dos territórios colonizados, de modo a valorizar a importância das cidades e vilas edificadas pelos colonizadores.
Por último, a simbologia gráfica permite a hierarquização de informação contida nos mapas de forma a valorizar ou desvalorizar determinados pontos ou áreas do território. É exemplo a desproporção gráfica dos símbolos utilizados para valorizar o centro em relação às periferias.
Em Portugal, na década de 60, a propaganda imperialista de Salazar chegava às escolas, através do Mapa-mundo, sob o lema: “Portugal não é pequeno.... (mas) grande e dilatado nos outros Continentes”. Neste Mundo as “colónias” aparecem ao lado de Portugal, sobrepostas sobre o território europeu, fazendo desaparecer vários países vizinhos, representados a tracejado, sob um Portugal colonial gigantesco.
Os mapas permitem todo o tipo de manipulações. Na maioria dos casos justificam-se publicamente por razões militares, mas, de facto, a falsificação deliberada dos conteúdos teve sempre uma razão de ordem política (Cosgrove e Daniels, 1988, p.324).
A visão autocêntrica que a Europa tem de si própria gera a ideia de um mundo articulado entre centro e periferias, ao nível do poder, do conhecimento, etc., onde o mundo se organiza concentricamente gerando uma diminuição de qualidades à medida que nos afastamos do centro.

Novas Centralidades
Através da história dos mapas e museus da Europa expus uma possível interpretação da sua posição autocêntrica face ao mundo. Sabemos que a visão do mundo autocêntrico não é condição exclusiva da história ocidental. É também intrínseca a todas as culturas hegemónicas do mundo. Mas aqui abordamos a história do Ocidente, escrita pelo Ocidente.
Vimos que os mapas ocultam, revelam, distorcem e/ou valorizam vários tipos de informação sobre o território. De modo semelhante os museus encenam a história da Humanidade na perspectiva daquele que colecciona e mostra. A hegemonia do Centro construiu a história, até ao século XX, numa perspectiva unifocada, e condicionou os “territórios” exteriores a uma existência periférica. Com o fim da 2ª Guerra Mundial a centralidade passou a ser bi-polar: Europa e Estados Unidos. O mundo divide-se entre: ocidente/resto-do-mundo, norte/sul, litoral/interior, cidade/campo, centro-urbano/periferia, etc. A exterioridade não é exclusiva dos territórios colonizadas (nas mais variadas formas), mas também das periferias dentro do próprio centro.
Com a Modernidade e a descoberta do “novo” mundo, o ocidente confronta-se como múltiplas realidades.
A partir de meados do século XX, o início da autonomia dos territórios colonizados desencadeia uma verdadeira deshierarquização. O fim dos Impérios coloniais e a incondicional marcha da democracia, nas nações ocidentais, obrigam a questionar a soberania do centro. A emergência dos novos Estados-Nação e o esbatimento das hierarquias nas democracias dos países ocidentais, iniciam o colapso da concepção concêntrica do mundo “civilizado”. A concepção do mundo, enquadrada a partir do centro entra em ruptura.
Com o fenómeno da Globalização a circulação de informação entre culturas revela uma multiplicidade de centros emergentes em territórios considerados periféricos. O ocidente começa a olhar para fora, para uma extensa periferia, cuja história, embora submetida aos parâmetros do centro, revela inúmeras identidades territoriais, culturais, sociais e políticas.
A diversidade, como condição do humano, foi um lento processo, dentro do qual, não será despiciendo referir os primeiros passos com a instalação da Democracia nos Estados Unidos e a Revolução Francesa, sob a égide do lema “Igualdade, Liberdade e Fraternidade”.
A Modernidade propicia a reconstrução da história. É a história de que nos fala Foucault, Benjamin e outros pensadoress: O signo da modernidade é uma forma de deciframento cujo valor deve ser procurado em “petits récits, acontecimentos imperceptíveis, em signos aparentemente sem significado nem valor (...) em acontecimentos que são exteriores aos grandes acontecimentos da história” (Bhabha, 2005, cap.V).
A “História” com um único centro, dá lugar às histórias geradas a partir de uma multiplicidade de centros.

Resistências - O Centro Histórico como Centro da “História”
Face à ameaça de descentramento, o Centro tende naturalmente a recentrar-se.
É o exemplo da cidade contemporânea europeia, com a recuperação dos seus centros históricos. Hoje, o Centro Histórico representa de forma museológica, toda a história da cidade, e ocupa na hierarquia do espaço urbano, um lugar condensador de identidade. O recentramento do Centro Histórico opõe, como em certas atitudes típicas do urbanismo culturalista, o centro à periferia, a cidade à não-cidade, etc., (...) mesmo quando tudo se reduz a uma ‘turistificação’ do centro, ou seja, a cidade museu e a cidade do museu, numa mesma atitude consumista (Domingues, 2007). É a tentativa de recuperação da identidade do centro da cidade, em consequência da emergência dos novos centros, aos quais não se reconhece a capacidade de produção de valores simbólicos. Mas o espaço público urbano não é mais um lugar estático e uniformemente hierarquizado. A cidade inclui (também) os vazios e os “Não-Lugares” (Augé, 1992), esse conceito que explana assertivamente a nossa incapacidade de reconhecer a identidade fora do centro convencional. A cidade é por natureza um território onde os Lugares (ainda) por nomear são desejáveis. Eles criam possibilidades sempre em aberto e contrariam a tendência fóbica das cidades europeias para o controlo totalitário do espaço público, em nome de demagógicas políticas urbanas que nomeiam, por exemplo, a segurança e/ou a higiene pública como estratégia de preenchimento dos vazios. Sem estes espaços a cidade deixaria de ser humana. Seria uma grande maqueta de si própria, acabada, fechada, sem futuro. Para Ábalos e Herreros, arquitectos espahois, estes espaços constituem áreas de impunidade. São espaços que deixam em suspenso aquilo que nos permite reconhecê-las como um lugar concreto, como por exemplo pôr-lhe um nome (...) são lugares transitórios, admitem albergar programas, ritos sociais ou modos de utilização diferentes (Ábalos e Herreros, 2006). Estes espaços ensaiam novas formas de sociabilização e abrem possibilidades de recriação permanente do espaço urbano. Na opinião destes arquitectos “a resistência ao estímulo ou à mudança significa, hoje, perder. Tudo o que queira permanecer como está, por ser capaz de resistir à pressão do tempo, da mudança e da novidade, perde e está fora do tempo, como nunca aconteceu antes na História” (ibid., 2006).

Que programação cultural se torna (então) urgente conceber? Que desafio para o século XXI?
Entendo a programação cultural como espaço de abertura ao mundo. A minha resposta centrar-se-á sobre as condições necessárias à criação desse espaço.
A impunidade ou informalidade - a ausência de fixação da forma - é uma qualidade que deve estender-se a todos os territórios, incluindo os culturais. Creio que este é o ponto de partida essencial para um debate sobre programação cultural.
À ideia de informalidade associo o conceito de Milieu (Deleuze e Guattari, 2001) - um lugar sem fronteiras, em movimento permanente, sem centro nem periferias, território de nomadismo por excelência.
Sabemos que o Mercado da cultura continua a solicitar às culturas periféricas, através de muitos agentes sociais, a produção de modelos que integrem códigos e significados facilmente reconhecíveis pelos consumidores do Centro. Este processo condiciona a criatividade e manipula fortemente a produção cultural. A solução não é a exportação de identidade para as periferias, cuja história construiu já as suas memórias. Mas, sobretudo, estabelecer condições de mobilidade, no sentido lato, e informalidade que permitam ligar novas e antigas centralidades nas suas manifestações tangíveis e intangíveis.
Esta rede configura uma base multi-espacial, multi-temporal e multi-direccional simultaneamente global e local.
É necessário desterritoralizar e descoclecionar a programação cultural pois “a noção de cultura autêntica como um universo autónomo internamente coerente não é mais sustentável” (Cancllini, 1997).
Desterritorializar de acordo com o uso que Fanon lhe atribuiu, através da descolonização do pensamento e não apenas dos territórios. Um novo espaço de reflexão sobre o universal, sobre o humano, a partir das sinergias geradas pela multiplicidade de experiências individuais, como construção do colectivo. Este Homem descolonizado, não nega o confronto, mas negoceia (Bhabha, 2005) e faz dele a base da Liberdade - expressão máxima da condição de Ser-humano - e dos seus limites. Um mundo em que deixaremos de falar de identidade local para falarmos de identidade individual, produtora de subjectividades elementares à construção do universal.
Para este Homem deixará de fazer sentido coleccionar. Coleccionar já não é do nosso tempo (Cancllini, 1997). A colecção de objectos, para adicionar testemunhos à narrativa da história, constitui hoje, uma experiência turística do mundo. As culturas já não se organizam em grupos estáveis e é cada vez mais difusa a “possibilidade do homem culto que conhece o repertório das Grandes Obras” (ibid., 1997). O espaço da cultura deverá ser, por natureza, um lugar de “impunidade”, informal, rebelde e dinâmico, gerador de novos conceitos. Um espaço onde a criatividade seja plena e permita “estabelecer conecções entre ideias ou experiências nunca antes conectadas” (Robinsom, 2001).
O desafio do século XXI passará por uma programação cultural que inverta a tendência centrípeta do Mercado Cultural Ocidental e a sua tentativa, recorrente, de manipular os modelos produzidos pelas periferias a partir dos modelos idealizadas pelo centro. É urgente abrir o mundo à energia centrífuga, rebelde, informal e inovadora das periferias.

Nesta paisagem sem território (porque território - também os da cultura – é aquilo que o olho dos poderes cobiça e toma por seu, enquanto paisagem é aquilo que o olhar livre vê e o corpo habita), a mola do mundo desloca-se das implacáveis leis do mercado, que tudo submetem e submergem, para espaços mais livres onde é outra a história desse mundo e das suas representações estéticas (...) é o regresso das formas mais pobres, do que espectaculares e sofisticadas, de arte e de vida. (Barrento, 2006,p.93)

Lisboa, Fevereiro 2007
Rosário Salema




Bibliografia
Ábalos. Herreros, 2006, in Revista JA 220/221 – Híbrido, entrevista por José Adrião e Ricardo Carvalho, Ordem do Arquitectos
Barrento, 2006, o estado do Mundo, Fundação Calouste Gulbenkian - 50 anos, Temas e Debates
Domingues, Álvaro, 2007, in revista Arquitectura e vida -o centro e a sua representação simbólica, nº 78O
Deleuze and Guattari, 2001, cit. in Bruce B. Janz, The Territory is not the Map”, and African Philosophy, Philosophy Today, winter
Cosgrove, Denis. Daniels, Stephens. 1988, The Iconography of Landscape, Cambridge Studies in Historical, Geography, Cambridge University Press
Bhabha, Homi. 2005, O Local da Cultura, Belo Horizonte, Editora UFMG, cap. IV
Haugé, Marc. 2005, Não-Lugares, introdução a uma Antropologia da Sobremodernidade”, editora 90º
Robinson, Ken, 2006, Out of our minds- Learning to be creative, Capstone, 2001
Simpson, Moira, 2006, o estado do Mundo, Fundação Calouste Gulbenkian - 50 anos, Temas e Debates
Canclini, Néstor Garcia, 1997, Culturas híbridas, poderes oblíquos - Estratégias para entrar e sair da modernidade, S.Paulo: EDUPS
Valada, Rui, 2006, Uma Visão da Europa I – Em busca de uma identidade, Ensaios Políticos, Graal Editores

4 comentários:

Anónimo disse...

"Desterritorializar de acordo com o uso que Fanon lhe atribuiu, através da descolonização do pensamento e não apenas dos territórios. Um novo espaço de reflexão sobre o universal, sobre o humano, a partir das sinergias geradas pela multiplicidade de experiências individuais, como construção do colectivo."

Rosario Salema

Resposta:

" ...
Eu quero uma casa no campo
onde eu possa ficar
no tamanho da paz

e tenha somente a certeza
dos limites do corpo e nada mais..."

Elis Regina

Anónimo disse...

O Centro

uma fatalidade da nossa humanidade terrena. A circunferência definiu-nos, girámos com ela na cabeça, quisemo-nos no centro do universo, morremos por/a quer acreditar nisso, e assim continuámos a pensar quando transferimos essa necessidade de centro para a Europa que se intitulava civilizada e nos representámos assim. Sempre o centro a marcar o nosso imaginário - até ao coração - centro do sentimento, ai, ou noutro lado , mas não abdicamos da procura de centros. E continuamos a discutir centros e periferias. Vamos sair do "centro"?

Obrigada, Rosario Salema , pela sua contribuição para nos pensarmos a partir de outras « figuras « !
E ao EdM que não se deixa " centrar", que mesmo nas horas de grande "concentração", retoma outros lugares onde esteve presente o EdM. Porque justamente não se quis centro, e continua agora com "Um Atlas de acontecimentos" a trazer-nos homens e mulheres talentosos, entusiasmados com a criação de formas novas para o mundo.
Obrigada EdM!

Anónimo disse...

Merci

Anónimo disse...

Empolgante texto, Rosário Salema.
É um prazer lêr-te e acompanhar a mudança de escala do teu pensamento.
Queremos mais.