sexta-feira, 28 de setembro de 2007

Espaço de reflexão II

«Que papéis podem desempenhar as imagens de satélite, os mapas, os sistemas de informação geográfica, ou os modelos baseados na teoria dos sistemas complexos na construção e difusão de discursos emergentes sobre o território?» [Professor Doutor José António Pereira Tenedório]

Mais uma questão lançada na Pós-Gradução em Culturas e Discursos Emergentes: da crítica às manifestações artísticas, a que responde Mónica Guerreiro:

Na minha abordagem a esta questão, devo antes circunscrever o alcance dos conceitos tal como os pretendo operar. Relativamente a “discursos emergentes sobre o território”, procurarei reportar-me à renovação dos discursos (ou seja, dos imaginários que são produzidos culturalmente e cuja difusão pertence aos mais diversos fóruns civilizacionais: académicos, artísticos, etc.) sobre a percepção que o homem faz do território que habita – e que imagina. Ou seja, a forma como o homem percebe, racionaliza e questiona a sua própria existência e dimensão. Nesse sentido, torna-se evidente que o conhecimento sobre a terra se actualizou irremediavelmente pela evolução da cartografia, a qual responsabilizamos pelo contributo para a geração de imaginários e discursos – míticos, ficcionais, literários, sagrados – sobre a aquisição de conhecimento da morfologia terrestre. Além de representarem um território, as cartas e os mapas exprimem graficamente a ideia que o homem faz do mundo real. Dado que a tecnologia espacial ampliou em muito as possibilidades da cartografia, as fotografias tiradas a grande altitude permitem uma rigorosa actualização das cartas topográficas: e as imagens recolhidas por satélites ampliaram exponencialmente o alcance do nosso olhar, logo, do nosso conhecimento.

Ao repensar a sua relação com o mundo, o homem necessitou primeiro de se confrontar com a falência da sua própria imagem como referente – e medida – de todas as coisas. A arquitectura terá tido um contributo fundamental para a alteração deste paradigma. Como escreveu Toyo Ito , “A visão do mundo muda radicalmente segundo o modo como se interpreta o corpo humano (...). Se recordarmos a imagem da figura humana concebida por Vitrúvio, percebemos que tanto para Alberti quanto para Da Vinci o círculo e o quadrado são figuras geométricas perfeitas, que melhor se enquadrariam com a natureza. A figura masculina desenhada por Leonardo Da Vinci, com as quatro robustas extremidades estendidas, está inscrita dentro de um círculo e dentro de um quadrado, mantendo uma postura simetricamente estética, com uma expressão cheia de dignidade. Tais figuras testemunhariam a harmonia e perfeição do corpo humano e demonstrariam uma verdade profunda e essencial acerca do homem e do mundo”. Mais uma vez, imagens e projecções: produção discursiva.
Depois de Vitrúvio, e depois do Renascimento, não faltam reformulações e condenações deste modelo “humano” – frequentemente confundido por um modelo “humanista”, segundo o qual os grandes pólos urbanos, habitados por arranha-céus, teriam descaracterizado a “escala” humana que se atribuíra às cidades. Podemos revisitar esta acepção, por exemplo, em Pinto Ribeiro : “As cidades podem ser vistas ou apreciadas de avião, de carro, a pé ou de transporte público e os diversos pontos de vista que delas podemos ter não são irrelevantes. Há cidades que são belas quando sobrevoadas e se tornam monótonas quando visitadas a pé (...). A maioria das nossas cidades tem perdido a escala que seria mais adequada à sua fruição enquanto espaço, arquitectura, urbanismo e coreografia, porque a medida do cidadão pedestre – que deveria ser medida reguladora das cidades – tem sido preterida em favor do automóvel, actual meio prioritário de ocupação da cidade. Com esta nova medida, que impõe novos hábitos e altera a qualidade de vida, alterou-se também a vivência do cidadão na sua cidade”.
Considero então que a nossa experiência do mundo, enquanto vivência não apenas empírica mas também imaginária, porque produzida por outros olhares e portanto numa experiência relacional, de alteridade, é o fundamento para a discursividade que sobre esse mundo narrativas infindas vêm gerando. Não deverá surpreender-nos, pois, que a dimensão espacial dessas imagens – uma dimensão para a maioria de nós inalcançável, mas para muitos ainda inconcebível – provoque reverberações mais profundas no questionar da relação do humano com o espaço do mundo. Quando em Julho de 1969 os primeiros humanos aterraram na lua, as imagens fotográficas e fílmicas transformaram a forma como nos vemos a nós próprios e ao nosso planeta. Quisemos crer naquele acontecimento como símbolo da conquista do que seria o último limiar do território físico: mas há quem defenda que este feito tecnológico teve como principal intuito um efeito discursivo.
Cito J. Jones : “Para a maioria de nós, a lua permanece um objecto puramente visual; a única prova de que o homem lá aterrou é fotográfica. Houve teorias da conspiração de que as imagens eram forjadas. E como as intenções futuras da NASA em relação à lua se revelaram algo nebulosas, têm-se tornado evidente que Apolo 11 e as missões subsequentes eram tanto golpes publicitários quanto outra coisa qualquer, e foram levadas a cabo, em grande parte, para tornar possíveis imagens como estas”. Ou seja, para possibilitar a geração e difusão de discursos em torno de conceitos como poderio económico (dos Estados Unidos), conquista espacial, anexação territorial e superioridade da espécie humana, capaz de transpor até as mais improváveis fronteiras. Não por acaso, 2001 Odisseia no Espaço (1968), de S. Kubrick – que antecedeu em um ano a alunagem – interpretou metaforicamente a conquista espacial enquanto evolucionismo.
Na última década, as centenas de milhar de fotografias enviadas pela Mars Global Surveyor , também da agência espacial norte-americana (que em Novembro de 2006, porém, perdeu contacto com a sonda), revelaram-nos a aparência daquele planeta tão mais misterioso: mas a ausência da figura humana nessas imagens não lhes concede o carácter marcante que tiveram os retratos de Aldrin e Armstrong a tactear a superfície lunar. A dimensão do homem deixou de servir, efectivamente, para tomar a medida de algumas coisas, que se provaram ser grandes demais. Mas a nossa imagem, a figura do ser humano, continua a servir para dar referência e, principalmente, escala, às leituras do território.
No século que ficou conhecido – entre tantos e dissemelhantes epítetos – como o século da generalização da luz artificial, o olhar do homem transformou-se. Não passámos a ver apenas para lá no globo terrestre: passámos a ver à noite. “A expansão da energia eléctrica provocou uma transformação radical dos modos de vida e das condições de trabalho, culminando na transformação completa da vida nocturna das cidades. Ao longo do final do século, com a consciência da centralidade do conceito de energia, os fluxos energéticos foram interpretados como integrantes da actividade humana à própria constituição do universo”, explica Montaner . Adquirida a distância, conquistada a tecnologia, o olhar humano permitiu-se ver além do que até então imaginara: “Os levantamentos aéreos e a fotogrametria tornaram possível a representação cartográfica da maior parte da superfície terrestre. A medição electrónica das distâncias por meio de raios laser e da luz, a realização de cartas fotográficas de projecção ortogonal, as imagens transmitidas por satélites, permitiram a reconstituição cartográfica de zonas quase inacessíveis” . As imagens produzidas por equipamentos de detecção remota transportados por satélites são sensíveis a secções do espectro electromagnético invisíveis ao olho humano.
Este prolongamento do olhar, coincidente com uma sensação de omnipresença, opera um efeito de redução sobre o mundo, segundo Pinto Ribeiro : “O mundo parece pequeno e os seus limites geográficos parecem-nos controlados e ao alcance de qualquer um. É uma ilusão de percepção construída pela tecnologia que suporta os actuais mecanismos da informação (e sua circulação). Outra construção deste sistema é a ideia de que nada fica de fora e tudo é abarcado por um fluxo de informação homogénea, da qual não há um restante, e nada é excluído”. A dimensão do homem torna-se então tão pequena – ou tão grande – que levou à criação, uma vez exaustivamente cartografado este mundo, de um outro, esse sim infinito: a Internet. A ideia deste arquivo em permanente construção deixa de ser um mapa do mundo para se tornar na concretização da metáfora Borgiana do mapa que representa o mundo à escala natural. Mas é um mundo fragmentário, necessariamente subjectivo, uma representação visual da conceptualização do mundo.
Um mundo anunciado (mais uma vez, no cinema, fábrica dos imaginários colectivos) em Blade Runner (1982), de R. Scott: retrato de uma sociedade heterogénea, composta por sobreposições e simultaneidades, mundo de misturas e não de segregação, onde alguns protagonistas falam uma língua franca resultante da hibridação do inglês. É a figuração acabada da Internet e da sua qualidade rizomática. O filme antecipou a condição fragmentária da pós-modernidade: e construiu uma concepção do mundo em que se vive de noite, segundo o fluxo incessante da iluminação artificial. Para Pinto Ribeiro , a paisagem nocturna da cidade é precisamente uma aquisição da técnica cinematográfica, porque “O cinema é para a cidade contemporânea o que a pintura foi para a Natureza do século XIX (...). A pintura havia-nos dado o dia, o alvorecer, o anoitecer e até cenas domésticas à luz das velas ou do fogo; mas a noite da cidade é-nos oferecida pelos equipamentos tecnológicos que o homem criou para superar o medo do escuro: os néons, os edifícios iluminados, os faróis dos carros, os interiores iluminados dos apartamentos. A paisagem nocturna é a prova do apaziguamento entre a tecnologia e a natureza”.
Mas talvez “apaziguamento” não seja a melhor forma de caracterizar esta relação. O cinema preserva ainda uma escala humana: um olhar enquadrado, montado e projectado, mas ainda um olhar humano. A realidade actual exige-nos que observemos a paisagem nocturna com o olhar supra-humano que encontramos fixado nas fotografias nocturnas feitas por satélite. Estas fotos mostram as áreas e os focos de luz na dureza terrestre, ou seja, os núcleos de concentração metropolitana da vida humana, o que tradicionalmente foi denominado como progresso. Como descreve Montaner , as imagens evidenciam “a extrema urbanização do leste dos Estados Unidos, o isolamento das massas metropolitanas da América Latina, a densidade urbana das ilhas japonesas, o vazio na África, a urbanização total da periferia da Península Ibérica e, destacando-se acima de tudo, a denominada blue banana, ampla faixa de luz artificial que vai de Manchester, Liverpool, Londres até Milão, passa pelos Países Baixos, o Ruhr, Hamburgo, Frankfurt e se estende a Berlim, Praga e Viena, que demonstra a coluna vertebral da industrialização europeia”. O próprio conceito de blue banana está inclusivamente a ser ultrapassado pela emergência de discursos em torno do futuro da Europa, que identificam uma sunbelt de Milão a Valência e uma yellow banana no eixo Paris-Varsóvia em direcção ao leste europeu, afirmando pólos de crescimento industrial para lá na centralidade.
As fotografias nocturnas do planeta constituem uma abordagem emergente à realidade territorial e social da nossa civilização: exibindo os índices de actividade metropolitana durante a noite, revelam o estádio de modernização de cada território e também a herança da sua própria história. Ainda, propiciam a construção de discursos social e politicamente comprometidos, ao denunciar a poluição lumínica e o desperdício, mostrando a desigualdade entre os povos e o seu consumo energético. Estas imagens evidenciam a capacidade da espécie humana de organizar o ambiente, de modificar a cartografia percebida, construindo uma nova relação com o mundo, que, para Montaner , é determinada pelos fluxos energéticos: “as pegadas impressas na paisagem pelo ser humano, este ser capaz de criar e consumir tanta energia exosmótica, que transforma continuamente o espaço, que é essencialmente arquitecto, engenheiro, urbanista, designer e construtor”.
Determinada pela presença humana, a imageologia da Terra é continuamente modificada pelo nosso conhecimento e pelos desenvolvimentos na forma de produzir, aceder e divulgar essas imagens. A apropriação pela cultura – e particularmente pelos discursos artísticos, da literatura ao cinema – das formas de organização espacial e da percepção desses registos imagéticos (ainda mais no pós-Google Earth ) acrescenta camadas significantes, ao democratizar as possibilidades discursivas em torno das imagens. (Mónica Guerreiro)


Bibliografia
1. Toyo Ito, apud Josep Maria Montaner, As Formas do Século XX, Editorial Gustavo Gili, Barcelona, 2002, p. 239.
2. António Pinto Ribeiro, “A minha cidade são cidades”, in Abrigos. Condições das cidades e energia da cultura, Edições Cotovia, Lisboa, 2004, pp. 17-18.
3. Jonathan Jones, Photos That Changed the World. The 20th Century, ed. Peter Stepan, Prestel, London, 2006, p. 124.
4. In http://mars.jpl.nasa.gov/mgs/.
5. Josep Maria Montaner, As Formas do Século XX, Editorial Gustavo Gili, Barcelona, 2002, p. 220.
6. VV.AA. Grande Atlas do Mundo, Público/Edições Temas da Actualidade, 1993, p. 99.
7. A. Pinto Ribeiro, “Abrigos”, in Abrigos. Condições das cidades e energia da cultura, Cotovia, Lisboa, 2004, p. 155.
8. A. Pinto Ribeiro, “Planta de cidade a que não falta a paisagem”, in Abrigos Condições das cidades e energia da cultura, Edições Cotovia, Lisboa, 2004, pp. 32.
9. Josep Maria Montaner, As Formas do Século XX, Editorial Gustavo Gili, Barcelona, 2002, p. 222.
10. Gert-Jan Hospers (2002) Beyond the Blue Banana? Structural Change in Europe's Geo-Economy, in www.ersa.org/ ersaconfs/ersa02/cd-rom/papers/210.pdf
11. Josep Maria Montaner, As Formas do Século XX, Editorial Gustavo Gili, Barcelona, 2002, p. 222.
12. Um exemplo de apropriação política: http://pundita.blogspot.com/2006/12/google-earth-as-tool-for-democratic.html.

2 comentários:

Anónimo disse...

Leituras

"Mais uma questão lançada na Pós-Gradução em Culturas e Discursos Emergentes: da crítica às manifestações artísticas, a que responde Mónica Guerreiro"


Não ha boas respostas sem boas perguntas. Umas e outras reflectem, aqui, a novidade e a actualidade do ensino, a fidelidade ao programa.
Pres - sentem-se a clareza, a limpidez, como exigências que se impuseram a todos.

Anónimo disse...

Excelente pergunta. Ela traduz um pensamento superior e emergente na Geografia em Portugal, pensamento quem tem por protogonista o Professor José António Tenedório. Quem pergunta assim Sabe que a tecnologia deverá servir em primeiro lugar a compreensão do "estado do mundo" e só depois a elaboração de informação geográfica sobre a Terra em que vivemos.

Excelente resposta. Em primeiro lugar pela utilização no discurso da noção de "representação do mundo" materializada em mapas e em Sistemas de Informação Geográfica que não são inocentes; são, isso sim, formas de exercício do poder. Em segundo lugar pelo valor de um discurso de encruzilhada que coloca a tecnologia no lugar certo: o de ferramenta para compreensão, embora parcial, do Mundo que vemos do Céu.