sexta-feira, 29 de junho de 2007

Óperas em estreia absoluta

A MONTANHA OP. 35 / METANOITE
29 e 30 de Junho, 21h30, Grande Auditório


Co-produção: Fundação Calouste Gulbenkian / OrchestrUtopica


A Montanha op. 35
Ópera de Câmara

Composição e libreto: Nuno Côrte-Real (compilação de textos de Luís de Camões, Teixeira de Pascoaes, Fernando Pessoa, Agostinho da Silva, Eugénio de Andrade e Nuno Côrte-Real); Maestro e direcção musical: Cesário Costa; Encenação e cenografia: Carlos Antunes; Figurinos e assistente de encenação: Teresa Vicente; Fotografia: Helena Gonçalves; Desenho de luz: Cristina Piedade; Pianista correpetidor: Nuno Barroso; OrchestrUtopica; Cantores: Eduarda Melo (soprano); Teresa Gardner (soprano); Luís Rodrigues (barítono); Actor: Rui Baeta; Direcção de cena: Erica Mandillo.

- INTERVALO -

Metanoite
Ópera de Câmara

Composição: João Madureira; Libreto: a partir de “O Senhor dos Herbais” e outros livros de Maria Gabriela Llansol; Adaptação: João Barrento; Maestro e direcção musical: Cesário Costa; Encenação: André e. Teodósio em parceria com Catarina Campino e Javier Núñez Gasco; Desenho de luz: Cristina Piedade; Pianista correpetidor: Pedro Vieira de Almeida; OrchestrUtopica; Cantores: Sónia Alcobaça (soprano), Sílvia Filipe (meio-soprano), Mário Redondo (barítono); Actores: André e. Teodósio, Catarina Campino, Javier Núñez Gasco, Maria João Machado, Mónica Garnel, Paula Sá Nogueira; Banda convidada: METANOITE (André Campino, André Prata, Hugo Cruz, Paulo Gonçalves); Direcção de cena: Otelo Lapa.


UMA MÚSICA SEM MANCHA DE RUÍDO, por João Barrento
(versão completa do texto que será distribuído em sala)

Metanoite é o espectáculo de um espectáculo virtual dentro do grande espectáculo real do mundo. Um espectáculo sobre o estado desse mundo e as suas perspectivas futuras, nomeadamente no âmbito da produção artística. Como a play within the play de Hamlet («The play’s the thing / Wherein I’ll catch the conscience of the King», II, ii), a ópera é um catalizador que porá à vista a consciência – e o inconsciente – do nosso mundo.
De que matéria(s) se faz hoje o mundo? A visão barroca e simbolista do mundo como sonho aplica-se menos ao nosso mundo do que a shakespeariana (e também calderoniana) do mundo como palco. Maria Gabriela Llansol, que forneceu a matéria para o libretto desta ópera, via-o, a princípio, como sendo feito sobretudo da matéria da injustiça, da «trama da existência» subordinada ao tempo do poder. Hoje, sem renunciar a esse ponto de vista, mas deslocando-o e ampliando-o, insiste mais (como demonstra o subtítulo de um dos últimos livros, O Senhor de Herbais. Breves ensaios literários sobre a reprodução estética do mundo, e suas tentações) na matéria das imagens e na natureza constitutivamente estética do mundo.
«O mundo é puramente estético (mas raramente santo)», diz a Rapariga do Fulgor. O ser estético disponibiliza-o para uma série de possibilidades (potencialidades) de apreensão para lá da sua mera representação e exposição, numa zona de que a maior parte das pessoas, ocupadas com o que (lhes) é útil, não se apercebe – porque esse trabalho estético consiste em ver à sombra do que se não vê. O não ser santo, por sua vez, implica que o mundo só pode ser (tendencialmente) cínico, pérfido, ressentido, absurdo. As estéticas de que o mundo é feito dão corpo, cor, imagem às coisas, são sinais de vida: «a beleza da forma e da cor é a santidade das coisas», lemos já, na pré-história desta Obra, em Depois dos Pregos na Erva. É essa, precisamente, a sua outra «santidade», aquela que Spinoza nelas viu com olhar (de) intenso. E é esse equilíbrio tensional entre a substância do invisível (que o estado actual do mundo insiste em esconder ou negar) e o estendal de absurdidade da sua imensa superfície visível, que Metanoite pretende dar a ver e problematizar – com humor e sensibilidade. Musil trata já este problema e esta tensão em O Homem sem Qualidades, uma obra imensa em que o essencial se joga entre a busca d’ «o outro estado» (que implica uma existência tacteante e céptica, aberta ao reino do possível e sem «qualidades») e a auto-satisfação dos «pragmáticos da razão suficiente». No meio, em inúmeras variantes, vegetam os ingénuos paladinos de uma realidade já sem perfil identificável, a que a cultura ocidental gosta de chamar o «Espírito», com maiúscula.
Também o libretto de Metanoite propõe dois filões alternantes, deixando repetidamente o caminho aberto a terceiras vias. O primeiro é o da paródia e da ironia, mais presente do que geralmente se pensa na Obra de Maria Gabriela Llansol, e que só por si poderia ter originado uma ópera puramente buffa. A paródia, lembremo-lo, tem a sua etimologia no párodos do teatro grego, aquela entrada lateral, ou canto paralelo que, remetendo para o pano de fundo contra o qual se desenrola a acção, se apresenta como discurso que passa ao lado da acção principal (isto é, mais visível) do mundo, que, no nosso caso, se pretende séria e é hilariante e absurda («Se o mundo é o imediato, este espectáculo / passa longe dele», diz a sua criadora, Psalmodia). O segundo filão, representado pelos intermezzi e pelo coro final, dá voz ao que deseja o que o desejo pode, à potência, despossuída de interesse, do «sexo do mundo», terceiro sexo que pode propiciar a terceira via implícita na ideia de Psalmodia para o seu espectáculo, que, repetindo realidades e práticas correntes no universo capitalista dominante, é sabotado, destruído, atraiçoado pelos «intermediários» (aquelas figuras, sinistras, invertebradas e sem rosto, de «funcionários» e guardas de uma lei que desconhecem, que povoam o universo de Kafka). A perspectiva aberta da criação, para lá do «Ou... ou» do Produtor e da ignorância gestionária do Escrivão, é a do «ímpar»: não simplesmente a do número, já que participa do duplo sentido do termo, e implica, para um espectáculo como para uma existência, a relação tensional fora da simetria estéril, a orientação para a singularidade in-igualável (do mundo por vir). Só assim se poderá sair dos maniqueísmos do mundo e da eterna oposição não resolvida entre o carnaval (trágico) da História e um outro antiquíssimo (e mais humano) rumor da história. «Onde houver Bem e Mal» – lemos em O Senhor de Herbais – «a justiça nunca será reposta.» Mas, sabemo-lo há muito, o mundo precisa de se reger (de ser regido) por batutas dualistas, desvirtuando inevitavelmente os resultados dessa equação viciada. Por isso, o grande problema do mundo – e do espectáculo (de Psalmodia) dentro do espectáculo (da ópera) dentro do espectáculo do mundo – é o da reposição de uma justiça imanente, para além do Bem e do Mal.
O libretto de Metanoite estrutura-se também em canto (odós, caminho, passagem; e óde, ode, canto) e contracanto (párodos), mas com todos os ingredientes que permitem minar este dualismo – como numa peça do teatro do absurdo, até certa altura mais próximo do universo radical de Beckett, depois, à medida que se caminha para o apoteótico e distópico final, evocando mais o nonsense de Ionesco. A figura de Psalmodia gere as oposições e desfaz o seu maniqueísmo, assumindo-se como o compromisso possível entre presente e futuro, e como representante de uma estética do «entre», do não definitivo. O canto, que vem do segundo grupo de figuras e do lugar da Rapariga, de Ana e Llansol, é a música leve e jubilosa dos que apostam no quase nada de uma existência nua e intensa, e se abrem ao Aberto do mundo. O contracanto é a cegarrega dissonante e estridente de clones e posers que não vêem e não sabem «o que deseja o que o desejo pode», nem entendem que «o uso do desejo é preferível ao uso do poder». Qualquer destas duas partes pode (e deve) provocar o riso como postura ética: o primeiro grupo, mais através da ironia subtil dos vencidos que acreditam no poder da metamorfose e (com Spinoza) que podemos «sentir e experimentar que somos eternos»; o segundo, pela paródia hilariante de um universo da «kultura» que se afunda no seu próprio delírio de audiências, orçamentos, néons e gadgets, e de uma precária eficácia instrumental esvaziada de conteúdo.
A suspeita em relação a visões dualistas é ainda evidenciada pela própria estrutura do libretto, com o seu desenvolvimento em três quadros e três momentos alternantes. O primeiro quadro propõe o espectáculo de Psalmodia como materialização sensível de um mundo desejado e desejante: daí o ser designado, num termo-síntese do qual irradia a sua intencionalidade, como «sonóptica com faro». No segundo somos confrontados com a visão do Produtor e as suas quimeras de uma cultura do futuro (que, como tudo aquilo que se não faz para um presente, está destinada a não ter futuro). No terceiro é-nos dado assistir ao descalabro contratual (e, assim, à inviabilidade do espectáculo), já que o contrato que se vai esboçando é um contrato com a técnica, mas não com o Vivo, com o «pacto de Bondade» proposto pela Rapariga do Fulgor, um contrato que se revela incapaz de conciliar a criação com a visão. Como contraponto dos três quadros, três momentos em que as vozes parecem vir já claramente do lado de lá da linha divisória da «metanoite»: as vozes da mulher (Ana-Llansol, últimas testemunhas humanas da clonização da arte), da Rapariga (a que «teme a impostura da língua», a desmemoriada – porque é só presente vivo –, a do sonho e do fulgor) e do cão Jade (um «ser sendo» que sabe como «desculpir o humano» dos medos que o tolhem). É uma galeria, múltipla e una, do que há de mais vivo no Vivo, no meio de um mundo a caminho de um futuro delirantemente dissonante, e que irá implodir para dentro de si próprio, tal como a arte que gera, progressivamente transformada no seu próprio medium, estéril, impraticável e vazio. E a viagem faz-se a bordo de um «comboio hidrofóbico»: porque a água é o elemento de um fado a que este país não soube furtar-se, nem compensar com a sua dose de liberdade de consciência.
As cenas da preparação do espectáculo (gorado) a que aqui se assiste deixam no ar dilemas e perguntas: como conceber o grande teatro do mundo de modo a que nele se possa afirmar a forma do humano? O humano será já hoje um fóssil, como sugere, no segundo quadro, a máquina que lê o pensamento e grava a palavra? Já estivémos mais perto da sua efectivação? A técnica desumaniza? Quando poderá o humano voltar a ser o que a visão ofertou a alguns e a História lhes retirou? Quando é que os olhos do humano estarão melhor apetrechados para ver o invisível, arriscando entrar no brilho perigoso e irresistível do Sol da metanoite? O que é, afinal, a metanoite?
A metanoite é o que nos espera do outro lado de uma fronteira que poucos atravessam: uma noite, mas de luz, um lugar de risco que é preciso atravessar para crescer na intensidade. Desde O Livro das Comunidades que encontramos na Obra de Maria Gabriela Llansol três noites: a do deserto, noite do agir em vida, travessia cega que os Gregos subordinavam a um destino que o texto de Llansol desconhece, porque nele o caminho da Figura, o «nocturno trabalho figural» (Onde Vais, Drama-Poesia?, p. 167), é o da busca de uma energia autónoma (dos semelhantes na diferença); a do exílio, noite escura dos banidos do tempo, do esquecimento a que a História e os seus poderes os votaram; e a do espírito (daquele espírito que é manifestação de uma energia do corpo), da futura noite da ressuscitação sem ressurreição, da salvação sem deus, de um «espaço edénico» a-teológico, que pode estar à espera de cada um de nós na dobra de qualquer experiência, do outro lado da fronteira da metanoite. A metanoite seduz, e mete medo. Os perigos inerentes ao poço da metanoite, com a sua natureza de «imagens tempestuosas», são inseparáveis dos prazeres do jogo da escrita, da criação e do encontro de si (a psicologia jungiana chama-lhe «processo de individuação», e nele o papel da arte é também central): porque é aí que encontramos o que não sabemos, mas precisamos de saber, porque é aí que arde a «chama num interior de anel», ou seja, a luz que torna possível o «eterno retorno do mútuo» e a emergência do humano – aquela categoria que o texto de Llansol desde sempre desloca do centro para a periferia e questiona, o não realizado, já fóssil e ainda quimera. A metanoite, na definição que dela dá em O Ensaio de Música (pp. 13-14) , é o terreno onde se ilumina a transparência deste enigma:
«Há, no real, um lugar envolvente e sublime, a que chamo metanoite, que está para além da noite,
quando se caminha porque é o único caminho,
obscura,
mas, depois dela,
o corpo volta a envolver o querer, o paladar age com a certeza, a visão rejubila em metamorfose. É nesse momento
do corpo dividido, mas já correndo,
que é noite, que será sempre noite, sem trevas, que a metanoite tem o poder de seduzir o texto, e de o fazer esvair-se do que é.»

Nesse momento poderemos talvez estar às portas do «espaço edénico (...) criado no meio da coisa, como um duplo feito de novo e de desordem» (M. G. Llansol, «O Espaço Edénico»). O contrato para a produção do espectáculo de Psalmodia não prevê tal momento. Mas quem sabe se, encostando o ouvido à pequena fresta que abre para um qualquer paraíso sem anjos, ali mesmo ao dobrar da esquina, não ouviremos ao longe – se isso é possível, e humano –, sobrepondo-se à «beleza ensurdecedora» do espectáculo, uma música sem mancha de ruído... Semelhante à língua do poema, que segue outro rumo e deixa ouvir outro rumor (brumor) que não é o da língua comum, geralmente atravessada pela «impostura». Em O Senhor de Herbais (p. 55), Llansol explica:
«... há um rumor, uma espécie de brumor, no mundo. É uma coisa que o atravessa e murmura. A linguagem ruidosa que falamos como aflitos ou velozes não lhe presta ouvidos (...) É um rumor envolto numa bruma sem linguagem. Ainda não foi codificado. [Vem de] antes da infância...»

E, como diria Caeiro, e Llansol confirma pela boca de Jane Austen e de Diotima, não há mistério nenhum nisto. Há e não há, como sempre nos textos de Maria Gabriela Llansol. De todas as figuras de Metanoite, talvez só o cão Jade possa verdadeiramente entender essa língua.

4 comentários:

Anónimo disse...

Comentário ingénuo

MGL "fala" e aproximano-nos do mundo com ela, por ela, devagar, guiados pela sua voz. JB que muito admiramos nao pode querer competir com ela no ataque à "espessura do mundo". A sua explicaçao do que é "Metanoite"- do que lá está de Llansol, do que "Metanoite" quer ser - nao acrescenta nada. Enche. E em MGL nao ha vazio para suportar tanta erudiçao, especulação, referências. E o texto de JB arrasta-nos para um vazio, afasta-nos da companhia de MGL, do espectaculo.
Por que nao deixar falar, por enquanto, "Metanoite"? Shakespeare não sonhou outra coisa.
Nós somos capazes de ver, de ouvir, de ler. Os que lêem Lansol, Shakespeare... todos os que "podem" ver, ouvir, ler. E vamos com certeza querer ler JB, mas este texto, aqui, agora,sentimo-lo como um enorme peso a arrastar para o "poço" a "leveza" do acontecer.

Bom dia!

Anónimo disse...

Ainda...


"...não há mistério nenhum nisto. Há e não há,..."

"E, como diria Caeiro, e Llansol confirma pela boca de Jane Austen e de Diotima, não há mistério nenhum nisto. Há e não há, como sempre nos textos de Maria Gabriela Llansol. De todas as figuras de Metanoite, talvez só o cão Jade possa verdadeiramente entender essa língua."

Sim, compreendemos. Mas então estamos de acordo: "prendre soin" do texto de Llansol é dar-lhe a palavra. E pode ser assim como o faz este pequenino texto de fecho: com um "sussurro" apenas.
Escutemos!
Obrigada.

Bom dia!

Anónimo disse...

explicaçao da leitura...

Quisemos ler o ultimo paragrafo do comentario separado do texto de JB, como nao lhe pertencendo. Lemos outra vez e afinal parece que nao é assim...
A citaçao final "enganou-nos". Pensamos que o texto de JB acabava ali, e "entrava" outra voz.
Para nos, aqui, o texto podia resumir-se ao ultimo paragrafo...

FlorGrela Estampa disse...

Pareceu-me que devo ter sido das poucas pessoas que pagou bilhete para ver as Óperas.
Não gostei nada disso... nem das referidas óperas.
E pareceu-me que os que aplaudiam o faziam porque conheciam alguém no palco. :-(