terça-feira, 9 de outubro de 2007

Uma nova centralidade para o pensamento crítico

A pedido de vários leitores, publicamos aqui o texto de apresentação do volume "A Urgência da Teoria", gentilmente cedido pela sua autora, a Professora Doutora Isabel Capeloa Gil (Universidade Católica Portuguesa), a quem muito agradecemos a disponibilidade. Recordamos que a apresentação teve lugar no dia 28 de Setembro de 2007, na Fundação Calouste Gulbenkian. No blogue Indústrias Culturais estão on-line registos em vídeo da ocasião.

Apresentar o volume "A Urgência da Teoria" constitui para mim uma enorme honra e responsabilidade. Trata-se, contudo, de uma tarefa hercúlea, complexa e quiçá impossível, dado o fôlego das intervenções, a diversidade das abordagens e a sua enorme riqueza. Sinto-me, por isso, um pouco como o cartógrafo de Jorge Luís Borges, consciente da sua insignificância e da incompletude do mapeamento, perante a complexidade do real. Assim, sem ambições de uma sistematização compreensiva, aliás já efectuada em profundidade por António Pinto Ribeiro nas Conclusões ao volume, proponho aqui uma narrativa localizada da interpelação que os textos produziram nesta leitora.

Tal como reflecte Robert Musil no início do seu opus magnus, O Homem sem Qualidades: "Era claro para si, que algo tinha de acontecer!" Musil escreve em 1930, num período marcado pela tensão política, pela crise civilizacional, pela radicalização do discurso em torno de projectos sócio-políticos diferentes na ideologia e próximos na tecnocracia, marcado pela anomia e pelo desencanto. Vivia-se uma época de polarização entre o excesso ruidoso do discurso político populista e a racionalidade cautelosa do discurso intelectual. Nestas condições era claro, para todos, como para Ulrich, o herói de Musil, que algo tinha de acontecer. E aconteceu!

Em 2007, vivemos tempos diferentes, mas igualmente turbulentos, cindidos entre o ressentimento e a arrogância, o medo do Outro e o enclausuramento do Eu, a fome e a abundância, a repressão e a democracia. Como diria Hölderlin, vivemos em tempos de carência e algo tem de acontecer. E aconteceu. No âmbito cultural, em Portugal, em 2007, acontece o Fórum Cultural O Estado do Mundo, uma iniciativa que procura aferir a singularidade destes tempos de carência e contribuir para a renovação dos modelos de participação cultural. Na sua polivalência e ambição compreensiva, o Fórum que a Fundação Calouste Gulbenkian associou à celebração dos seus 50 anos, mostra afinal a cultura como evento, prática de cidadania, foco de desenvolvimento económico, espaço de reflexão e intervenção política. Como referia Homi Bhabha na sua lição inaugural "Ética e Estética do Globalismo: Uma Perspectiva Pós-Colonial", constata-se afinal que: "Quando o mundo se torna sombrio, a ficção, a arte, a poesia, a teoria, a metáfora vêm iluminar a nossa difícil situação cultural e política."

Que a teoria possa iluminar a difícil situação do Estado do Mundo, pode parecer à partida um projecto delicado, num momento de transição entre a recusa da ambição hegemónica da teoria, que culminou no final dos anos 80 com a discussão “Against Theory” [“Contra a Teoria”] concentrada em torno da revista, Critical Inquiry e o gesto de retorno à ágora, como espaço privilegiado para “uma outra abordagem, mais rica, dos enigmas das sociedades contemporâneas”, como escreve A. P. Ribeiro. As razões apresentadas contra a teoria são de vária ordem, mas podem resumir-se em dois pontos fundamentais: o amplexo totalitário de um modelo de pensamento abstracto que perdeu qualquer ligação ao real, e a ausência de intervenção social e política dos modelos conceptuais produzidos.

A tarefa que a plataforma 2 do Estado do Mundo se coloca com as grandes lições “A Urgência da Teoria” é por isso difícil e ousada, pois apresenta-se como projecto de recanonização da teoria em novo contexto. Buscando desconstruir a teoria exercida de cima para baixo, por uma elite para um conjunto de conversos ensimesmados na sua torre de marfim, demonstra a necessidade de articular o pensamento crítico com a complexa realidade contemporânea e a utilidade da razão para a educação do género humano apelando, como refere Miguel Vale de Almeida na sua lição, à necessidade de “[...] sistematizar zonas de tensão crítica entre o analítico e o político.” A teoria de que aqui se fala surge assim como a théoria do pensamento grego, que se afirma como projecto abrangente e crítico de observação do mundo e que contribui para o que Aristóteles considerava a finalidade da ética e da política: a obtenção da “vida boa”, configurando, contudo, a complexidade deste mundo que como nos diz Bernard Stiegler está “[...]a fazer-se, mas sempre sob a ameaça de se desfazer.”

O volume A Urgência da Teoria colige as lições apresentadas por Marc Ferro, Homi Bhabha, Paul Gilroy, Miguel Vale de Almeida, Pedro Magalhães, Danièle Cohn, Daniel Miller, Andy Pratt, Bernard Stiegler, António Cícero, Filipe Duarte Santos, Paul D. Miller e Mehdi Belhaj Kacem. Expondo um complexo mapa do modo como as ciências, da antropologia, à filosofia, passando pelos estudos culturais, pela ciência política, pelas ciências do ambiente e pela história concebem o nosso difícil momento, esta obra apresenta na sua diversidade, abordagens complementares e argumentos opostos, esboçados entre o pessimismo e a esperança, o realismo e a utopia. Concebe-se assim uma reflexão que se desloca do tópico ao u-tópico, que se ancora dentro dos limites académicos da disciplina e nesse campo reflecte sobre a ciência e o Estado do Mundo, como é o caso de Pedro Magalhães, para a Ciência Política, ou de Danièle Cohn para a Estética; ou então que lança o projecto teórico como modelo explicativo da complexidade do humano, pugnando por uma realidade a vir, como o fazem Homi Bhabha ou Paul Gilroy.

Grafando a diferente diversidade da teoria, os ensaios posicionam-se igualmente entre o discurso pedagógico e o performativo, ou emergente, segundo a designação de Homi Bhabha na obra seminal The Location of Culture. Isto é, entre o modelo de explicação ancorado na tradição e procurando no passado os traços que permitem apreender o desenvolvimento futuro; ou então outro modelo que busca uma nova racionalidade para interpelar um Estado do Mundo que se vê em Estado de Emergência, quer enquanto excepção quer como oportunidade.

No fundo, quer se opte pela distinção de Bhabha, ou pela mais científica organização entre postulados realistas e utópico-interpretativos, a diversidade de tom deste volume reflecte claramente as identidades singulares, em termos científicos, políticos, de classe, religião ou género dos seus intervenientes. E de facto é nesta clara localização do discurso, que o leitor se sente interpelado a concordar ou a divergir. Efectivamente, se característica comum existe nos ensaios apresentados para responder ao repto do curador do Fórum – e são muito mais as diferenças do que as similitudes, pelo que não desejo de modo algum encontrar aqui um denominador comum necessariamente artificial -, se característica comum existe na sua apreciação do Estado do Mundo, dizia, é a da consciência da tensão entre alocação e deslocação, emplacement e displacement. De forma directa ou indirecta, está presente a consciência de que vivemos num mundo deslocado, quer o sintamos sob a forma do cosmopolitismo da globalização hegemónica ou sob a forma do cosmopolitismo diaspórico, que Homi Bhabha denomina de vernáculo, daqueles que assumem a diáspora como condição e não como escolha.

Habitando o universo global, o gesto cosmopolita é certamente herdeiro de um olhar sobre o Outro, de uma curiosidade infinda. No caso das culturas ocidentais, este gesto, que muitas vezes se identificou com estratégias de apoderamento e imperialismo, tem vindo a ser redesenhado na modernidade reflexiva, e também sob o impulso dos estudos pós-coloniais, para retomar a problemática da cultura como modelo de afirmação identitária de grupos sub-figurados no espaço simbólico da representação. Nas sociedades multiculturais, trata-se não só de entender e respeitar o Outro no seu espaço cultural e geográfico próprio, mas sobretudo de estar atento à diferença interna, isto é, às diversas formas de que se reveste esta alteridade no seio da cultura, e de pensar em que moldes se pode subscrever ou não a afirmação de Nestor Garcia Canclíni, de que a globalização nos coloca perante a inevitabilidade da hibridação de todas as culturas.

Os fluxos globais expressam o desejo desta hibridação, mas simultaneamente o sentido de outros tantos Estados do Mundo. Exprimem a situação dos migrantes e dos exilados, dos intelectuais e dos empresários, dos terroristas, dos activistas, dos médicos e missionários. Para além das distinções sociais e políticas, nesta ética da deslocação, o que distingue entre os vários fluxos é que para alguns o não-lugar é sentido como ameaça e humilhação, ao passo que para outros se constitui em apanágio da vida boa. Neste Estado de Emergência qual será então o papel a desempenhar pelo discurso da teoria? Será na opinião dos intervenientes no volume, também um papel de deslocação e de mediação; de uma deslocação da racionalidade dos centros identitários que tornam as culturas em focos de “assassinato simbólico”, de uma deslocação do discurso das fronteiras disciplinares tradicionais, contribuindo para um desventramento do que é próprio e o seu enxerto com o alheio, seja na dimensão disciplinar, social, ética ou política. Assim se torna a teoria uma prática que afirma, intervindo, que se assume cosmopolita sem deixar de ser localizada. Os ensaios da Urgência da Teoria enunciam, assim, possibilidades de exercício deste novo cosmopolitismo, estruturando-se em torno de uma pangeia que integra quatro continentes em íntima articulação: o cuidado, a memória, a modernidade e a cultura.

Bernard Stiegler em “Tomar cuidado. Sobre solicitude no século XX” apresenta uma ética do cuidado como estratégia para ultrapassar as contradições do fluxo tecnológico do presente. Sem se barricar num posicionamento ludita, Stiegler retoma as teses desenvolvidas na trilogia La téchnique et le temps (2001), onde articula a intimidade entre os processos de renovação tecnológica e as modificações sociais e estuda o papel das novas tecnologias na destruição da atenção nas sociedades contemporâneas. Stiegler articula um problema central da modernidade, já tematizado por Gustave le Bon, no final do século XIX, e por Walter Benjamin e Georg Simmel, no início do século XX, o problema da distracção e da incapacidade de selecção entre os impulsos tecnológicos produzidos pela modernidade. Contra este crescente síndroma da atenção deficiente, Stiegler propõe uma nova ética do cuidado, centrada na educação como nootécnica, isto é, como técnica de formação intelectual e espiritual e não apenas reduzida à sua dimensão sensitiva e nutritiva. Trata-se de recuperar a empatia com o que se aprende, presente nas desvirtuadas mnemónicas e singularmente representada na feliz expressão inglesa “to learn by heart”. Trata-se também de encontrar com esta nova ética do cuidado na formação modalidades de existência “menos tóxicas, mais úteis à humanidade.”

O cuidado afirma assim o desejo de uma nova sustentabilidade espiritual, que se articula com o discurso ecológico de Filipe Duarte Santos em “Sustentabilidade, Cultura e Evolução”, onde o desenvolvimento económico e o desenvolvimento cultural se apresentam como formantes de um modelo global que apenas em articulação dinâmica, e para além do que o autor denomina o discurso dos limites e o discurso prometeano, podem “tornar admirável o nosso mundo e a nossa qualidade de vida”. Também a estética, no entrecruzar do biológico, da dor, com a representação enuncia uma teoria do cuidado em latência, discutida por Daniéle Cohn em “As artes, o verdadeiro, o justo”. Questionando-se se “Não olhámos sempre para a dor dos outros?” Cohn recupera a reflexão sobre a articulação entre o sofrimento e a arte, a piedade e a liberdade, que desde os gregos, a Edmund Burke e mais recentemente com Susan Sontag, se apresenta como ancilar no modo como as sociedades se auto-representam e representam o Outro. Não é por acaso que a teoria estética romântica associa a excepção do génio à excepcionalidade da dor na tópica representação do artista doente e sofredor. A questão que Cohn nos coloca é no entanto outra. Assumindo a beleza da forma em sofrimento, a partir de uma discussão da teoria estética de Kant, a Lessing e Goethe, em torno da escultura grega Laocoonte, Cohn encontra na arte uma força espiritual, de tom certamente essencialista, mas que em interacção permite uma pedagogia do cuidado com o Outro sofredor. “A piedade é uma pedagogia da liberdade”, escreve, recuperando uma visão empática e potencialmente ética da arte.

Posicionamento diferente é aquele que nos traz Paul Gilroy em “Multicultura e convivialidade na Europa pós-colonial”, resumindo as teses de After Empire: Multiculture or Postcolonial Melancholia, onde chama a atenção para o apagamento do sujeito colonial da narrativa ética e estética da teoria europeia. Central nas teses de Gilroy é a discussão em torno do que as sociedades do centro consideram o inassimilável, as identidades marginais pela raça, pelo sexo, pela classe ou pela orientação sexual. Contudo, Gilroy propõe-se ler o Iluminismo como uma contra-história no sentido foucaultiano, relevando o seu potencial emancipatório e renegando as teologias da origem. Apresenta assim como proposta para a construção de uma ética do cuidado, uma nova convivialidade, que possibilite a superação da mentalidade melancólica relativamente aos binarismos que subentendem a estrutura colonial e imperial do centro. Trata-se aqui de afirmar o cosmopolitismo como cuidado e não como privilégio, a afirmação de um cosmopolitismo enraizado (rooted cosmopolitanism) onde as identidades se contactam de modo compreeensivo e para o qual a narrativa literária e a figuração estética contribuem de modo decisivo.

Modalidade essencial para a formação das identidades, ancilar na construção das nações, a memória apresenta-se no ensaio de Marc Ferro sob a sua roupagem mais obscura, isto é, como motor do ressentimento. Se é certo que o historiador dos Annales não deixa de reconhecer à historiografia uma carga terapêutica, contudo, assinala que o “ressentimento é um explosivo cuja carga não pára de acumular.” Apresentando-se talvez como o texto mais sóbrio, mas também mais pessimista, o ensaio de Ferro constata o conflito entre as ideias de progresso que a globalização não cumpriu e o ressentimento daqueles que não participam deste ideal, avisando que “o amanhã não será sorridente.” Carregado com a sobriedade da experiência, o ensaio de Marc Ferro denota o sentimento da Unheimlichkeit freudiana, apreendendo a história como projecção alienada das pulsões negativas dos indivíduos, mas com ela se comprometendo como com um lar assombrado que não pode nem quer deixar de habitar. Com um texto singularmente intitulado “Niilismo e democracia”, Mehdi Belhaj Kacem habita também a casa assombrada agora pelo espectro do niilismo, tornado narrativa legitimadora da modernidade democrática e das suas instituições. Pensador radical que habita uma modernidade centralizadora, Kacem enceta um diálogo com a tradição intelectual europeia e a sua memória selectiva quer no que diz respeito às narrativas fundadoras da nação quer ao seu esforço de reparação traumática. Observando, tal como Gilroy anteriormente, a sobreposição da narrativa traumática do passado colonial pelo trauma de Auschwitz, que funda o moderno niilismo democrático, Kacem, ao contrário de Ferro propõe a negatividade como terapia, “quem quer a paz deve recusar a história”, chamando a atenção para o grande efeito terapêutico do niilismo democrático, o de recusar as origens e as genealogias como argumento legitimador da auto-consciência dos povos e dos Estados.

A cartografia da modernidade como um “território em que tudo é fluxo” surge pela mão de Paul D. Miller em “Estranho/Desfiado”. Assumindo a condição tecnológica da electromodernidade como fundadora deste fluxo de impactos e interpelações, produzidos por saturação mediática, o ensaio de Paul Miller coloca-se quiçá no ponto oposto à argumentação de Stiegler. O músico Miller observa a deriva da realidade como uma “alucinação consensual”, marcada pela diversidade de planos polifrénicos que provocam a abstracção da essência humana. Num mundo em estado virtual, Paul D. Miller vê na arte e na cultura a tarefa hercúlea de “abordar a pluralidade dos reais”, tornando-os pedagogicamente acessíveis aos indivíduos, que o habitam. Este herdeiro de Baudrillard, afirma enfaticamente “a realidade acabou” e apela na ecologia visual do ensaio, constituído por interpelações, impactos, à rehumanização do cidadão moderno através de uma arte conciliada com o universo tecnológico-digital que habitamos.

Em tom diferente e não virtual, Pedro Magalhães discute uma questão perene da prática da ciência no âmbito das chamadas ciências sociais e humanas. Em “A Ciência da Ciência Política” pergunta-se “O que significa fazer ciência quando se estuda a política?”. Retoma em novo contexto, aplicando-a a uma das áreas legitimadoras da narrativa contemporânea: a ciência política, a questão que já em 1959 C.P. Snow se coloca na Rede Lecture e que está na origem de The Two Cultures: a da cientificidade das ciências sociais. De forma meticulosa, o autor debate os argumentos em torno dos pressupostos realistas ou interpretivistas, concluindo que também nesta prática académica: “as[...] melhores estimativas dos efeitos de uma [...] variável explicativa estão crucialmente dependentes das nossas pressuposições.” Constata-se afinal, como referia Karl Popper, que toda a ciência, por mais abstracta, empírica e quantitativa que seja, é sempre fundamentalmente humana, já que se constrói sobre pressupostos contingentes, localizados e singulares. O político, mesmo na sua versão científica, também é cultural.

Afinal, apesar da aparente distância dos argumentos, encontramo-nos neste ensaio, como no do antropólogo Daniel Miller (“Sociedades muito grandes e muito pequenas”) perante a lógica cosmológica da modernidade, na sua ânsia de abarcar através de modelos explicativos, seja de ordem empírica ou filosófico-cultural, uma realidade plural, em constante mutação, e em que os pressupostos têm uma validade efémera. Se para Pedro Magalhães a resposta é a abertura a uma abordagem pluralista do real, que possa fornecer generalizações robustas, Daniel Miller propõe em tom utópico a articulação entre um modelo de reflexão flexível e em construção e a acção individual. Num novo esforço de entendimento do real que define como uma “nova cartografia antropológica”, Miller propõe um modelo assente no facto de: “sentirmos que a nossa capacidade de compreender procura acompanhar a nossa capacidade de mudar o mundo.”

O ensaio de Homi Bhabha, já referido, reproduzindo a lição inaugural do Fórum, percorre efectivamente os quatro aspectos em que organizei esta reflexão: cuidado, memória, modernidade e cultura e funciona quase como uma reflexão metateórica relativamente aos restantes ensaios. Discutindo como problema central do nosso tempo: a complexidade da diversidade cultural e o seu impacto na distribuição de riqueza, Bhabha define a ambivalência como a característica marcante deste nexo global, marcado desde logo pela articulação entre a conectividade tecnológica e a cultura. Na ambivalência híbrida das nações alheias da modernidade (tradução feliz de alien nation), é necessário o direito à narrativa, que por um lado configure modelos de pertença de comunidades minoritárias, mas que torne a cultura em acto performativo, isto é, modelo terapêutico de um diálogo intercultural assente na imaginação, sem nunca descurar o exame crítico, a dúvida e a deliberação. Bhabha, professor de literatura inglesa na Universidade de Harvard, propõe um modelo de resolução que passa pela abertura da narrativa própria ao alheio, ou melhor que se funda na reescrita da narrativa própria pelo alheio. Não posso deixar neste ponto de recordar as teses que um deslocado moderno, o poeta Hölderlin, defendia no final do século XVIII relativamente a uma outra interacção dinâmica entre uma então emergente cultura alemã e o modelo hegemónico da cultura clássica. Também para Hölderlin, o desventramento era necessário. Num modelo incompreensível para os seus contemporâneos, defendia que apenas ao alheio era possível percepcionar o que nos é próprio, ou seja numa estética de articulação defendia que do mesmo modo que apenas os gregos poderiam conceber o que era de facto alemão (das Eigene, o que nos é próprio) também aos alemães cabia o entendimento do que lhes era estranho (das Fremde). Homi Bhabha defende afinal como ética da modernidade um modelo de cosmopolitismo, que denomina de vernáculo, assente na articulação entre os grupos hegemónicos e as minorias, e num pressuposto da tradução e da transferência das narrativas, que figure um sentimento de pertença cívica assente numa linguagem de interpretação intercultural.

Concluindo igualmente pela necessidade da democratização das narrativas, Miguel Vale de Almeida em “Da Diferença e da Desigualdade: Lição de Experiência Etnográfica” ensaia uma discussão sobre a cultura como problema e solução para um agenciamento democrático das minorias. Se de um lado se torna urgente a crítica à cultura enquanto “conjunto de atributos essencializados”, aspecto em que reside igualmente a crítica de António Cícero, por outro, Vale de Almeida reconhece que as políticas identitárias de resistência assentes na raça e na cultura são fruto de um recalcado sistema imperial-colonial e que o multiculturalismo politicamente correcto não conseguiu de todo resolver. Se não for entendida da perspectiva de uma diferença que reifica e menoriza, mas enquanto prática de uma cidadania cosmopolita, a cultura apresenta-se como estratégia produtiva e caminho para uma efectiva hibridação dos discursos, ancorados no processo histórico, purgados de anseios de excepção e excepcionalidade e assentes numa consciência transcultural de contaminação produtiva. Aplicando a reflexão teórica a uma crítica do discurso da excepcionalidade do modelo colonial português e aos seus avatares, as teses do lusotropicalismo ou da lusofonia, o antropólogo avisa que a narrativa cosmopolita não pode ser reificada no campo do cultural, na consciência de que uma praxilogia renovada da cultura passa necessariamente pela articulação entre o cultural e o político. Tal como para Bhabha, as construções simbólicas apresentam-se como estratégias singulares para apreender a complexidade e a desigualdade, como terapêuticas de sublimação, estratégias de negociação com o real produzidas no entrecruzar do social com o político.

Ora é precisamente este terrível conceito, a cultura, que António Cícero, em tom crítico se propõe suplantar pela mais cosmopolita noção de civilização no ensaio “Da actualidade do conceito de civilização”. Considerando o conceito de cultura como responsável pelo barbarismo da modernidade, evocando uma acepção tradicional que recorda a lapidar definição de Norbert Elias de cultura como a “auto-consciência da nação”, Cícero repudia o novo tribalismo que políticas essencializadas da cultura consigo trazem e no espírito de um novo racionalismo propõe uma recuperação do modelo civilizacional como legitimador da condição cosmopolita daquele que “se comporta no mundo como numa cidade da qual é cidadão”. A razão, e a dúvida sistemática, dela resultante, apresentam-se como estratégias para uma nova tolerância. Recorrendo ao discurso de Montaigne sobre as assimetrias culturais, criticando a cegueira etnográfica de Lévi-Strauss, Cícero critica o potencial democrático da cultura recuperando um conceito de civilização mais paritário, menos marcado pelas hegemonias, superando os nacionalismos, mas que afinal, esquece Cícero, mas que urge recordar, está igualmente eivado de mácula, já que foi também ele usado como referência a uma visão do mundo etnocêntrica e elitista, disseminada desde o séc. XVIII, pelo imperialismo napoleónico. A bondade do ensaio assenta num apelo à urgência de reflexão crítica sobre os conceitos, à dúvida como método à consciência da falibilidade da razão, e afinal à urgência da teoria.

Os ensaios de Bhabha, Gilroy, Vale de Almeida e de António Cícero discutem as vantagens e desvantagens da cultura para a vida, sem descurar é certo a sua dimensão pragmática, mas situando o discurso num plano simbólico-político. O ensaio de Andy C. Pratt, “O estado da economia cultural” parte da constatação da mercantilização e da democratização da cultura como facto e não como problema, discutindo os impactos económicos da cultura, seja no factor do bem-estar das populações, no contributo para o PIB, na regeneração geográfica de espaços ou na inclusão social. A economia da cultura, apesar da dificuldade assumida de contabilizar o impacto material do produto e da escassez de indicadores, surge na acepção de Pratt como verdadeira prática de sustentabilidade das populações. Se é certo que nem todos podemos ser vencedores nas guerras culturais, como refere no seu ensaio, é certo que mesmo a dimensão terapêutica da arte, da literatura e da cultura se torna visível nos espaços mais inesperados, tal como na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, onde no mês de Agosto último a arte tutelou as tréguas nesta zona de guerra, durante a apresentação do Festival de Rua do Centro Cultural da Rua 2.

Na reflexão sólida e séria apresentada em A Urgência da Teoria lê-se que é urgente dar uma nova centralidade ao pensamento crítico, que é urgente tratar a cultura não apenas como folclore dos Estados ou de minorias enclausuradas, como reduto de “identidades assassinas”, mas como espaço de emergência de uma nova racionalidade ético-política. Valeu a pena esta busca de soluções teóricas para as crises do tempo presente, que o gesto esperançoso de Rui Vilar na sua apresentação ao volume projecta na busca de “uma outra educação, de um outro papel para os intelectuais, numa nova negociação cultural”. Trata-se afinal de verificar como a teoria pode quebrar o mar gelado que nos rodeia (Kafka) e afirmar-se como reduto de esperança, ainda que, como refere Homi Bhabha de modo exemplar: “ [...]os ventos de mudança soprem com violência contra a porta da história.

ISABEL CAPELOA GIL, 28 de Setembro de 2007

6 comentários:

Anónimo disse...

Três mulheres

"...( Danièle) Cohn
encontra na arte uma força espiritual, de tom certamente essencialista, mas que em interacção permite uma pedagogia do cuidado com o Outro sofredor. “A piedade é uma pedagogia da liberdade”, escreve, recuperando uma visão empática e potencialmente ética da arte."

Julia Kristeva:

"Ce que je sais pourtant, c'est qu'aucune action politique ne saurait s'y substituer si l'humanisme - lui même en souffrance - ne se donnait pas les moyens d'interpréter et de réinventer " cette intelligence amoureuse" issue et inséparable de la compassion de l'Homme de douleur, et qui se confondrait avec le divin lui-même."

Agustina Bessa-Luis

Gosta de afirmar que so as mulheres conhecem a compaixao, sua unica virtude.

DC e JK redescobrem a importância da compaixão, guiadas pela urgência de travar a desumanização. Agustina sabe e ensina onde vive a compaixão, configura-a.

Anónimo disse...

Obrigado

Anónimo disse...

"Uma nova centralidade para o pensamento crítico"

Nao queremos mais centros. Nem novos. Nem para o pensamento, nem para o pensamento crítico. Queremos "centrinhos", assim como o do olhar de "poesia minima" - pensamento critico - em rede gregária.

Anónimo disse...

erratum: leia-se "poesia minimal" e não "poesia minima"

Anónimo disse...

centralidade

"Uma nova centralidade para o pensamento crítico"
Tarefa ingrata, sim. Que serve em primeiro lugar o autor,que se encontrou na na leitura que fez. Trata-se de uma leitura centripta -agrupar, encontrar coerência nos temas tratados. Muito longa, fechada. Não abre, arruma. "Trabalho de casa". E a luz, a pequenina luz?
Essa vamos procura-la nos textos. Deve là estar. Vamos ler, e, depois, voltamos a
"Uma nova centralidade para o pensamento crítico"

Anónimo disse...

Ainda a compaixão...

... Par exemple, l'idée qu'on peut atteindre le bonheur en changeant le monde est une idée maculine, et c'est une très belle idée, mais elle a atteint sses limites. Il faut un autre point de vu, qui a à avoir avec la compassion, avec l'inégalité entre riches et pauvres et la conscience de ce genre de questions vient, il me semble, plus facilement aux femmes qu'aux hommes.

Peter Hoeg, "la diagonale du clonwn", in "Libération, livres ", 27 septembre 2007.