terça-feira, 7 de agosto de 2007

Comentário

A pequena memória, por Tiago Bartolomeu Costa

Quando o programa O Estado do Mundo foi apresentado escrevi (Público, 26/02) que uma das suas mais valias consistia na possibilidade de se provar da existência de «uma nova vaga de fundo da criação contemporânea nacional» e perceber se fazia sentido «falar de uma nova geração».
Apresentados os resultados de uma das mais amplas e generosas iniciativas, a residência artística Sítio das Artes, descrita como «espaço vocacionado para a produção e reflexidade artísticas, num contexto de permanente confronto e interacção», o balanço fica bastante aquém dessa hipótese de «vaga de fundo» e ainda menos de «uma nova geração». O problema estará nas escolhas, no programa ou na expectativa?
Se um programa é sempre genérico (mas este em particular era atento às carências nacionais) e as escolhas nunca se equilibram, a expectativa desta catalogação é fundamentada pela necessidade de perceber as hipóteses de artistas surgidos num contexto pós-dramático, trágico e sobre-referencial. De uma maneira geral, os protagonistas das artes do corpo presentes parecem ter desperdiçado uma oportunidade de reflectirem sobre o que significa criar hoje.
Entre a expectativa mínima e a esperança máxima, as propostas concebidas por Joana Craveiro, Juliana Penna, Vera Santos, Ana Trincão, Miguel Bonneville e Maria Gil, eram unidas por aquilo que o artista plástico Christian Boltanski classificou de «a pequena memória» – que Craveiro citava, e bem –, mas que se tornou um escape para muitos criadores: a defesa de que uma selecção de referências imediatas e geracionais pode substituir sem perda os processos evolutivos da História. Ora, Boltanski não diz apenas que a nossa memória é tão ou mais importante que a memória universal. Diz também, e muito concretamente, que a memória individual só tem importância se confrontada com os efeitos provocados pela memória universal. Ou seja, essa «pequena memória» exige distância e capacidade de auto-crítica, pontos que estas propostas fazem por ignorar através daquilo que lhes é mais imediato, reconhecível e, por vezes, descartável.
Uns ainda em processo de maturidade artística, ou alguma incapacidade em lidar com o legado teórico e performático bem como com os desafios deste convite, outros obcecados com o duelo forma/conteúdo revelam, afinal, sintomas claros de um estado actual da criação. Lamentavelmente parecem todos continuar a falar para dentro, para si e para nada.
Se a generalização grassa a Europa, em Portugal só impressiona mais porque as rupturas são tão recentes. É por isso penoso ver a errância, o formalismo e uma pressa geracional em afirmar um discurso e forçar uma independência sem que sejam claros, em muitos casos, nem contra aquilo que se está a ir nem os caminhos a seguir. E, por isso, desta deriva modernaça e erradamente desenraizada (ou por enraizar), fica-nos a sensação de absoluta apatia pelo que existe em seu redor e acentuação de um gozo pelo sentimento de periferia. Como se bastasse aquilo que se conhece para analisar o estado do mundo.

Público, 30 de Julho 2007

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