sexta-feira, 13 de julho de 2007

«O passado sou eu mesmo»

Celestino Mondlane (Maputo, 1972) - aliás, Mudaulane (já lá iremos) - é escultor, mas tem-se dedicado ao Desenho. Também dá aulas de artes visuais em Moçambique, onde vive e trabalha. Para fazer as suas obras, que têm circulado internacionalmente, com mais ou menos dificuldade, utiliza apenas papel e caneta, material básico simples de encontrar. É mais do que uma opção estética: «um artista tem de trabalhar com o que tem. E não é preciso muito.»


© Henrique Figueiredo

Porquê os painéis? «Porque o grande formato tem a ver com a minha identidade artística. Não quero pintar a pensar no que posso vender aos turistas.» Desta forma demarca-se dos jovens artistas da geração do pós-independência que se limitam a copiar o trabalho de autores consagrados, como Malangatana, produzindo «miniaturas». Jovens que também procuram fugir às tradições. Não é o seu caso. O nome com que está registado oficialmente é Celestino Mondlane, mas é como Mudaulane que assina os seus desenhos - o seu nome "nativo", que lhe é atribuído na linha do clã, da família de que descende no Sul de Moçambique.

«Temos uma riqueza cultural muito grande», afirma com os olhos a brilhar, generosamente. «E o passado sou eu mesmo», acrescenta. Quer convocar o passado para valorizar, fazer «arte do povo para o povo». Foi por isso que, meses antes de ser seleccionado para integrar o Sítio das Artes, partiu para o Norte de Moçambique, mais especificamente para o Planalto de Mueda, com o objectivo de «estudar» as práticas do povo Makonde, que preservam muito os seus valores e a cultura tradicional. Observou, tirou fotografias e fez registos em vídeo - documentação que deixou em Maputo, na confusão dos preparativos para viajar até Lisboa. Infelizmente para nós, porque a memória dele está fresca. Mas para que não faltassem essas referências no seu espaço de residência no CAMJAP, recorreu à biblioteca para fotocopiar imagens do livro "Resultados Científicos da Minha Viagem de Pesquisas Etnográficas no Sudeste da África Oriental", de Karl Weule (Maputo, Ministério da Cultura/Departamento de Museus, 2000) - que lá está também para consulta do público. Vemos instrumentos musicais, tatuagens, máscaras, utensílios, etc. O que mais o fascinou nesta incursão pelas práticas ancestrais dos Makonde foram os ritos de iniciação, com os líderes espirituais, mulheres e homens mais velhos que são tratados como deuses. É a essas cerimónias que, embora mantidas com algum secretismo, vai buscar vários elementos para o grande painel de 26 folhas que está a preparar para apresentar dia 28 de Julho. Chamar-se-á "A vida no Planalto de Mueda".

No entanto, sentiu-se ameaçado e não pôde permanecer como observador por muito tempo. «É um povo violento e a certa altura tornou-se perigoso». Esses homens constituiram a força armada durante a guerra e são agora ex-combatentes. Celestino é prudente. Está atento ao que o rodeia e fala-nos abertamente dos problemas do país. Mas receamos poder comprometê-lo, reproduzindo afirmações sobre uma realidade que desconhecemos. Estaríamos a trair a sua discrição, ainda que se trate manifestamente de um «artista de intervenção».

O painel de 6 folhas "Sobe e desce" (ver foto em cima), que está afixado na parede à nossa frente, é sobre a vida em Maputo. As coisas não avançam? «É mais a descer do que a subir...» - e sorri.

3 comentários:

Anónimo disse...

"Réplica e Rebeldia"

Também a obra de CM dà testemunha à sua maneira as questões que a grande exposição "Réplica e Rebeldia" desvela:"«Porque o grande formato tem a ver com a minha identidade artística. Não quero pintar a pensar no que posso vender aos turistas.» Desta forma demarca-se dos jovens artistas da geração do pós-independência que se limitam a copiar o trabalho de autores consagrados, como Malangatana,produzindo «miniaturas». Jovens que também procuram fugir às tradições."

Nao à reprodução, sim à tradição que cada ser tem inscrita em si. Aproximar-se do que esta vivo, dar testemunho dessa força, inscrever-se nela, intervir "em nome da terra".
b bom dia!

Anónimo disse...

Nas cidades do sul
hà violência e hà excesso,
de semente.
Estalam os rios e foge a àgua.
O corpo, encortiçado, racha.

Lendas vêm de hà séculos assoreando
as margens.
E quando à boca de um poço vamos
provar o nosso eco,
àguas puras irrompem,
noutra lingua.

Luisa Neto Jorge,"A Lume"/ "Par le Feu", Editions le Passeur,1996

Anónimo disse...

Visitação

Hoje sou eu quem como um rio transluz
Hoje sou eu quem sem primícias seca

Ó nuvem (balbucio)
ó plácida névoa dos meus olhos

escrevo-as humílima
são as primeiras letras
canto-a a primeira harmonia

farei ditados, cópias, quem
mas dita mas
depressa mais depressa
emenda?

De saudade de saudade morro!

Á boca da caverna:
onde está (e choro, feita criança)
onde está ele o meu tesoiro?...

Luisa Neto Jorge, "Par le Feux",Le Passeur,1996